Obituário político de Juan Carlos


A monarquia em Espanha está na corda bamba e, com ela, a actual coligação governamental e, quiçá, o Estado unitário. Desaparecido o juancarlismo, poderá não haver tempo para o leonorismo.


A relação das ditaduras com o tempo é difícil. A condição de ditador está quase sempre associada à história pessoal de um indivíduo. Com a excepção da Coreia do Norte, tem sido difícil a um qualquer ditador perpetuar-se no tempo, mesmo por linha sucessória. A legitimidade do ditador tende a esgotar-se com a morte física e a fazer desaparecer a ditadura. Tal não significa que os ditadores não planeiem a sucessão, muitas vezes com consciência de que o regime que criaram desaparecerá às mãos do sucessor. Franco atrasou sucessivas vezes a chegada da morte, hesitou muitas mais na escolha do sucessor, mesmo dentro das possibilidades oferecidas pela extensa prole de Afonso xiii, legítimos uns, muitos mais os outros. A morte de Carrero Blanco terá eliminado a última possibilidade real de continuação do franquismo para lá da morte de Franco.

Franco fez aprovar em 1947 a lei de sucessão na chefia do Estado, confiando-a ao rei de Espanha, a escolher por si. Escolheu, em 1969, Juan Carlos, saltando por cima da legitimidade do terceiro filho de Afonso xiii. Don Juan pai não ficou particularmente agradado e só em 1977, a poucas semanas das primeiras eleições democráticas desde 1936, renunciou à sucessão.

Com a morte de Franco, em fins de 1975, Juan Carlos, depois de jurar fidelidade aos princípios do Movimiento Nacional (a versão organizada do franquismo), foi proclamado rei. Juan Carlos i só em 1981 se emancipou totalmente da pesada herança franquista, não obstante a Constituição de 1978 ter consagrado a monarquia parlamentar, legitimada por eleições e pelo referendo constitucional. A tentativa de golpe militar em 25 de Fevereiro de 1981 permitiu ao rei ganhar uma legitimidade própria por via de uma aparição televisiva – em grande uniforme militar – com a duração de um minuto e 30 segundos, denunciando os golpistas, defendendo a ordem constitucional e cometendo a supressão do golpe à junta de chefes de estado-maior.

A renúncia de Juan Carlos em 2014 foi acompanhada da manutenção do título de rei. De então para cá têm continuado as investigações das autoridades judiciais suíças e espanholas, centradas nos 100 milhões de dólares oferecidos em 2008 pelo rei da Arábia Saudita, três anos antes de ser atribuída a empresas espanholas a construção do TGV de Meca a Medina. Depositária da prenda real: a fundação Lucum, criada no Panamá, com endereço no Palácio da Zarzuela e tendo como primeiro beneficiário Juan Carlos i e, como segundo beneficiário, o filho, Filipe. Parte do património passou pela “amiga entrañable”, Corinna Larsen, que viu as suas conversas comprometedoras com um chantagista profissional (o ex-comissário de polícia Villarejo) serem gravadas e abundantemente divulgadas.

Juanito abandonou o território espanhol no início da semana, num exílio autoimposto. Não tendo disponibilidade financeira para regularizar junto do fisco os 100 milhões, não basta considerar que a ilicitude da doação está protegida pela imunidade dos chefes de Estado, pelo menos no que respeita ao exercício de funções públicas (e não será difícil provar que a doação não integra tal categoria). O regresso de Juanito ao Estoril como exílio dourado no séc. xxi corre o risco de não repetir os anos 50, em que por lá se cruzavam com os Bourbon de Espanha os Sabóia de Itália, os condes de Paris, Miguel da Roménia, Simeão da Bulgária, os Karadjordjevic da Jugoslávia e os arquiduques da Áustria. Juanito poderá também vir a dar muitas dores de cabeça às autoridades portuguesas. Ou, pior, pode obrigá-las a estudar direito.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Obituário político de Juan Carlos


A monarquia em Espanha está na corda bamba e, com ela, a actual coligação governamental e, quiçá, o Estado unitário. Desaparecido o juancarlismo, poderá não haver tempo para o leonorismo.


A relação das ditaduras com o tempo é difícil. A condição de ditador está quase sempre associada à história pessoal de um indivíduo. Com a excepção da Coreia do Norte, tem sido difícil a um qualquer ditador perpetuar-se no tempo, mesmo por linha sucessória. A legitimidade do ditador tende a esgotar-se com a morte física e a fazer desaparecer a ditadura. Tal não significa que os ditadores não planeiem a sucessão, muitas vezes com consciência de que o regime que criaram desaparecerá às mãos do sucessor. Franco atrasou sucessivas vezes a chegada da morte, hesitou muitas mais na escolha do sucessor, mesmo dentro das possibilidades oferecidas pela extensa prole de Afonso xiii, legítimos uns, muitos mais os outros. A morte de Carrero Blanco terá eliminado a última possibilidade real de continuação do franquismo para lá da morte de Franco.

Franco fez aprovar em 1947 a lei de sucessão na chefia do Estado, confiando-a ao rei de Espanha, a escolher por si. Escolheu, em 1969, Juan Carlos, saltando por cima da legitimidade do terceiro filho de Afonso xiii. Don Juan pai não ficou particularmente agradado e só em 1977, a poucas semanas das primeiras eleições democráticas desde 1936, renunciou à sucessão.

Com a morte de Franco, em fins de 1975, Juan Carlos, depois de jurar fidelidade aos princípios do Movimiento Nacional (a versão organizada do franquismo), foi proclamado rei. Juan Carlos i só em 1981 se emancipou totalmente da pesada herança franquista, não obstante a Constituição de 1978 ter consagrado a monarquia parlamentar, legitimada por eleições e pelo referendo constitucional. A tentativa de golpe militar em 25 de Fevereiro de 1981 permitiu ao rei ganhar uma legitimidade própria por via de uma aparição televisiva – em grande uniforme militar – com a duração de um minuto e 30 segundos, denunciando os golpistas, defendendo a ordem constitucional e cometendo a supressão do golpe à junta de chefes de estado-maior.

A renúncia de Juan Carlos em 2014 foi acompanhada da manutenção do título de rei. De então para cá têm continuado as investigações das autoridades judiciais suíças e espanholas, centradas nos 100 milhões de dólares oferecidos em 2008 pelo rei da Arábia Saudita, três anos antes de ser atribuída a empresas espanholas a construção do TGV de Meca a Medina. Depositária da prenda real: a fundação Lucum, criada no Panamá, com endereço no Palácio da Zarzuela e tendo como primeiro beneficiário Juan Carlos i e, como segundo beneficiário, o filho, Filipe. Parte do património passou pela “amiga entrañable”, Corinna Larsen, que viu as suas conversas comprometedoras com um chantagista profissional (o ex-comissário de polícia Villarejo) serem gravadas e abundantemente divulgadas.

Juanito abandonou o território espanhol no início da semana, num exílio autoimposto. Não tendo disponibilidade financeira para regularizar junto do fisco os 100 milhões, não basta considerar que a ilicitude da doação está protegida pela imunidade dos chefes de Estado, pelo menos no que respeita ao exercício de funções públicas (e não será difícil provar que a doação não integra tal categoria). O regresso de Juanito ao Estoril como exílio dourado no séc. xxi corre o risco de não repetir os anos 50, em que por lá se cruzavam com os Bourbon de Espanha os Sabóia de Itália, os condes de Paris, Miguel da Roménia, Simeão da Bulgária, os Karadjordjevic da Jugoslávia e os arquiduques da Áustria. Juanito poderá também vir a dar muitas dores de cabeça às autoridades portuguesas. Ou, pior, pode obrigá-las a estudar direito.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990