O calor pode dilatar os corpos, mas encolhe os vestidos. Em cima e em baixo. Uma maré desce pela areia morena e espreitam-se as curvas que as ondas deixaram impressas nessas garotas de corpo dourado de que falava Vinicius, num à-vontade tão grande que hoje o embrulharia em processos de pedofilia. A minha varanda fede a sardinhas. Por todas as esquinas deAlcácer há fogareiros acesos e alguém debruçado sobre eles, virando as bichinhas de um lado para o outro até atingirem aquela mistura de prata e ouro que faz escorrer água pela boca.
Perco-me volta e meia pelas ruelas estreitas de Alcácer, que conservam a sombra e um tudo-nada de frescura. Nunca me perco do rio, meu irmão, que ao sabor das marés me vigia a varanda e toma conta das minhas noites mal dormidas com aquele seu marulhar meigo de enfeitiçar gaivotas e mergulhões. Uma figura tardia, feminina, desenha-se na contraluz. Não tarda, o sol irá desaparecer para lá dos arrozais que este ano não brotam, alaranjando as paredes alvas do Bairro da Quintinha, trazendo consigo uma brisa morna que impede a cerveja de gelar nos copos e provoca no corpo uma preguiça de madrugadas em branco, carregada de pensamentos infinitos, incómodos, magoados. Sinto falta do Paulo Pimenta, o Gelateiro, meu mano de todas as guerras que combatemos por dentro com a força que era só dele e o mandava, de punhos nus, fazer parar os elefantes de Aníbal nos contrafortes dos Pirenéus. Tenho saudades desse descaramento divino que, ao mínimo movimento tímido de uma mulher bela, o mandava recitar, como se cantasse uma balada de Bob Dylan, o poema mais malicioso de Fernando Pessoa: “Tem qualquer coisa de barco/ Tem qualquer coisa de gomo/ Meu Deus! Quando é que eu embarco?/ Ó fome!Quando é que eu como?” Embarcou sempre, sempre, sempre. Até à morte que mo levou, deixando um vazio impossível de preencher…