Era aqui que estávamos (e um recuo para o milésimo imediatamente anterior ao lugar onde agora nos inscrevemos pode ser extremamente revelador): a nova ordem felicidade, divindade, imortalidade – mesmo que não para todos; mas importava lá isso verdadeiramente? – ocupava, literalmente (os best-sellers eram estes), os espíritos (em devir, talvez, para memórias digitais), já desenganados de qualquer esforço de articular o humano com instrumentos outros que não o cálculo tecno-científico e, neste, a redução à medicalização e à bio-engenharia, e sem grandeza adicional que não a da felicidade subsumida a uma qualquer hodierna declinação hedonista (sucesso, fama, poder), sem demasiada imaginação e mais ausente complexidade. E então veio o vírus, prostrando o homo deus, as suas vulgatas, as ideias feitas sobre o tudo sob controlo, o mundo debaixo do nosso domínio, a ausência de segredo, a omnipotência do conhecimento sem sabedoria, o futuro radiante das abstracções ilusórias como negação do presente – que se impõe como bem menos fútil e mais inquietante do que soía – e do toque na pele.
Quando consultamos o Dicionário (Imperfeito) que Agustina Bessa-Luís nos legou, a entrada para Decadência oferece a seguinte definição: “ao mesmo tempo que desdenhamos da vida eterna, queremos eternizar-nos. A doença aterra-nos, porque já não somos mais um corpo entregue aos golpes do destino, ou julgamos que o não somos. O nosso sangue empalideceu, perdemos a força da decisão, a hesitação tornou-se uma espécie de compadrio entre os povos. O nosso tempo quer arranjos e não grandes obras. Os pensamentos são tímidos e vulgares” (Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores, 2008, p.71).
Epicuro dizia que de nada valia orar aos deuses, sendo a felicidade o único motivo da existência. À época, uma blasfémia; hoje, o autoflorescimento – como exclusivo leit-motiv da vida – tornou-se concepção dominante ou hegemónica. Diferentemente do filósofo grego, os pensadores modernos entenderam que a felicidade não se resumia a um objectivo pessoal, mas tratava-se de um desígnio coletivo. Neste sentido, aliás, o Estado de Bem-Estar foi, originalmente, planeado no “interesse da nação e não no dos indivíduos necessitados” (p.43). Para Bismarck, no final do séc.XIX, com o estabelecimento, inédito, de pensões e segurança social estatal, o desiderato era alcançar a lealdade dos cidadãos e não, propriamente, aumentar a qualidade de vida das pessoas.
Se é certo que a Declaração de Independência dos EUA faz menção à felicidade, esta perspectiva-a como direito à busca da (felicidade) e não direito à (própria felicidade), o que acarreta(va) diferenças (políticas) de monta: na primeira das formulações, impedir-se-á o Estado de se intrometer na vida de cada um, limitar-se-ia a esfera deste – obrigações de non faccere; no segundo dos casos, em se entendendo que cabe ao Estado a promoção da felicidade (colectiva) dos cidadãos, as obrigações são já positivas (obrigações de faccere).
Perceber, exactamente, o que significará felicidade, nem sempre se afigurará fácil, sobretudo se recorrermos a instrumentos tantas vezes debitados nos media, como o PIB: tendo um PIB per capita muito superior ao da Costa Rica, Singapura, no entanto, vê os seus cidadãos, nos inquéritos internacionais, mostrarem-se muito menos satisfeitos com a vida do que os seus homólogos costa-riquenhos. Os dados internacionais, neste contexto, não podem deixar de nos fazer reflectir: “apesar da maior prosperidade, conforto e segurança, a taxa de suicídios no mundo desenvolvido (…) [é] também muito mais elevada do que nas sociedades tradicionais” (p.45). Ilustrando, vemos que no “Perú, Guatemala, Filipinas e Albânia (países em vias de desenvolvimento e com instabilidade política), em cada ano suicida-se uma em cada cem pessoas. Em países ricos e pacíficos como Suíça, França, Japão e Nova Zelândia, anualmente tiram a vida a si mesmas vinte e cinco em cada 100.000 pessoas” (p.45).
Sabemos que a felicidade se jogará em uma dimensão psicológica e, também, no plano biológico. No primeiro dos casos, a relação que estabelecemos com as expectativas (que vamos formulando) determinarão o nosso grau de felicidade. No segundo dos âmbitos, estaremos moldados pela nossa bioquímica. Ora, se assim é, então muitos sugerem que para aumentar a nossa felicidade devemos manipular a bioquímica humana (para além de se insistir, hoje por hoje, na mudança na didáctica e pedagogia nas escolas, “pela primeira vez na história, pelo menos alguns, acreditam que seria mais fácil mudar a bioquímica dos alunos”; 12% dos soldados norte-americanos no Iraque e 17% dos que se encontravam no Afeganistão tomavam comprimidos para dormir, ou anti-depressivos para lidar com a depressão e a angústia da guerra).
Em 2009, metade dos presos das cadeias federais dos EUA tinham ido para à prisão devido às drogas; 38% dos detidos italianos estribavam na mesma causalidade; 55% dos presos do Reino Unido padeciam de igual problema. Assim, a realidade com a qual nos deparamos é que “o Estado confia conseguir regular a busca bioquímica da felicidade, ao separar as «más» manipulações das «boas». O princípio é claro: as manipulações bioquímicas que reforcem a estabilidade política, a ordem social e o crescimento económico são permitidas e até fomentadas (por exemplo, as manipulações que acalmam as crianças hiperactivas na escola, ou que fazem os soldados avançar na batalha). As manipulações que ameacem a estabilidade e o crescimento são proibidas (…) À medida que a busca bioquímica da felicidade se acelere, remodelará a política, a sociedade e a economia e será cada vez mais difícil controlá-la” (p.53).
Grande parte do que agora podemos aqui ler fora antecipado, desde há muito, para nos cingirmos ao campo do ensaio e a uma obra que suscitou particular clamor e controvérsia (embora precedida, por exemplo, no domínio ficcional, pela Soma, para controlar ou anular a consciência/angústia, em O admirável mundo novo, de Huxley), em Regras para o parque humano (Angelus Novus, 2008), de Peter Sloterdijk, um livro tão provocador como capaz de um diagnóstico cultural que, em boa medida, parece(u) a caminho de cumprir-se (ou ainda há instantes parecia cumprir-se, antes da emergência covídica e do repto lançado a uma humildade outra de que o homo deus nem queria ouvir falar). Veja-se a seguinte descrição, de Yuval Noah Harari, sobre como, actualmente, se encara a procura da felicidade: “a solução bioquímica consiste em desenvolver produtos e tratamentos que proporcionem aos humanos um sem fim de sensações prazenteiras, de modo a que nunca nos faltem. A sugestão de Buda era a de reduzir a nossa ânsia de sensações agradáveis e não permitir que estas controlem a nossa vida (…) Hoje em dia, a humanidade está muito mais interessada na solução bioquímica. Não importa o que digam os monges nos Himalaias, ou os filósofos nas suas torres de marfim; para o gigante capitalista, a felicidade é prazer. Ponto. (…) Tanto a investigação científica como a actividade económica orientam-se a este fim, e cada ano produzem-se melhores analgésicos, novos sabores de gelados, colchões mais cómodos e jogos mais aditivos para os nossos smartphones, de modo a que não padeçamos de nem um só instante de tédio enquanto esperamos o autocarro” (p.55). Contudo, gelados e telefones inteligentes não bastarão e, no limite, será a remodelação do homo sapiens que se visará (a ascensão de homens a deuses), através de: a) engenharia biológica (não haveria razão, segundo este posicionamento, para que o sapiens seja a última estação); b) a engenharia cyborg (fusão do corpo orgânico com dispositivos não orgânicos, como mãos biónicas, olhos artificiais, ou milhões de nanorrobots, que navegarão pela nossa torrente sanguínea, diagnosticarão problemas e repararão danos: “um cyborg poderia existir em numerosos lugares ao mesmo tempo. Uma médica cyborg poderia realizar operações cirúrgicas de emergência em Tóquio, em Chicago e numa estação espacial em Marte, sem sair do seu escritório em Estocolmo. Só necessitaria de uma conexão rápida à internet, e uns quantos pares de olhos e mãos biónicas. Mas, pensando bem, porquê pares? Porque não quartetos? De facto, inclusivamente estes são realmente supérfluos. Por que é que um médico cyborg teria que suster na mão um bisturi de cirurgião quando poderia conectar a sua mente diretamente ao instrumento. Talvez isto pareça ficção científica, mas já é uma realidade. Recentemente, uns monos aprenderam a controlar mãos e pés biónicos não conectados ao seu corpo mediante elétrodos implantados no seu cérebro. Pacientes impossibilitados são capazes de mover extremidades biónicas ou de utilizar computadores só com o poder da mente. Se uma pessoa quiser, já pode controlar à distância os dispositivos eléctricos de sua casa utilizando um capacete eléctrico que «lê a mente». O uso do capacete não requere implantes cerebrais. Funciona ao ler os sinais eléctricos que passam através do couro cabeludo. Se alguém quiser acender a luz da cozinha, coloca o capacete, imagina algum sinal mental pré-programado (por exemplo, que a sua mão direita se move) e o interruptor aciona-se. Podem comprar-se estes capacetes pela internet por apenas 400 euros. No início de 2015, a várias centenas de trabalhadores do centro de alta tecnologia Epicenter (Estocolmo) foram implantados microchips nas mãos. Os chips têm o tamanho aproximado de um grão de arroz e armazenam informação personalizada de segurança que permite aos trabalhadores abrir portas e usar fotocopiadoras com um simples movimento de mão. Esperam que em breve possam efectuar pagamentos da mesma forma (…) «na atualidade (…) necessitamos de códigos, pin, contra-senhas: não seria mais fácil simplesmente tocar com a mão?»”, pp.57-58); c) engenharia de seres não orgânicos (produção de seres totalmente não orgânicos: “as redes neurais serão substituídas por programas informáticos com capacidade de navegar tanto por mundos virtuais como não virtuais, livres das limitações da química orgânica. Depois de quatro mil anos a vagar dentro do reino dos compostos orgânicos, a vida saltará para a imensidade do reino inorgânico e adoptará formas que não podemos imaginar nem sequer nos nossos sonhos mais fantásticos” (p.58).
Em realidade, não é possível imaginar-se, agora, afirma Yuval Noah Harari, com a mente e os desejos que possuímos, como será a vida de quem possuirá uma outra mente e desejos, mas podemos concluir que quando e se a tecnologia nos permita remodelar a mente humana o homo sapiens desaparecerá, a história humana chegará ao seu fim e iniciar-se-á um processo completamente novo (p.59). As mudanças surgem a uma velocidade inaudita e nada parece poder deter tal aceleração (nem a morte), e para colocar o pé no travão necessário seria saber onde o travão se encontra.
De acordo com Noah Harari, a nova ordem – felicidade, divindade, imortalidade – será só para alguns, e nos bairros mais sórdidos permanecerá a eterna luta com a pobreza, a doença e a violência. E, acrescente-se, mesmo a demanda daqueles novos valores está longe de ser um projecto com a certeza de êxito. Não podemos prever, em absoluto, mesmo olhando para o passado. Este, de resto, serve para verificarmos o pouco natural, óbvio, inevitável do nosso estádio: estamos assim, numa dada etapa, mas se olharmos para trás com atenção, poderíamos ter seguido outras linhas, encontrarmo-nos em estações diversas desta, não era inevitável nem óbvio que fossemos assim. Olhar para trás permitir-nos-á, pois, propiciar caminhos diversos da tendência que se encontra agora à nossa frente. Enunciar um caminho, este diagnóstico cultural em concreto – como o de uma nova ordem que se vê (via) despontar – surge, a nosso ver, ultima ratio, e com utilidade, enquanto denúncia dessa mesma ordem, ou, quando menos, de consequências (nefastas) que pode adquirir o novo horizonte.
Num paradoxo tremendo, levar a apologia do humanismo (o culto da humanidade), que nos tem guiado nos últimos 300 anos, até ao seu extremo (alçar, à letra, o humano a deus, capaz de se criar e modificar, por completo), poderá significar o fim desse mesmo humanismo (porque poderia já não ser do humano que falaríamos). Aqui a nuance, em realidade, salto abismal, face a Sloterdijk: onde este vê na falência do humanismo – o projecto sintetizado no lema ler amansa a alma – a necessidade de antropotécnicas, e, nestas, a mutação biológico-genética, Harari vê, nestas mesmas possibilidades, o culminar e o apogeu do humanismo – que nesse mesmo limite se negaria (a si mesmo, porque, com as antropotécnicas mais arrojadas, e até técnicas não ligadas já ao antropos, superaria o humano).