Morreu Juan Marsé, a memória daqueles a quem o General Franco deu cabo da infância

Morreu Juan Marsé, a memória daqueles a quem o General Franco deu cabo da infância


Morreu, aos 87 anos, um dos grandes narradores da língua espanhola na sequência de complicações com uma insuficiência renal de que padecia há anos. O escritor catalão tinha várias das suas obras publicadas no nosso país, entre elas “Rabos de Lagartixa”, “O Amante Bilingue” e “Essa Puta Tão Distinta”.


Dele ficará uma memória tão poderosa que sobra, e se ocupa de tantos outros, acolhe inúmeras vítimas, tantos rostos anónimos. Juan Marsé foi o autor dessa narrativa do pós-guerra que se esforça por superar a agonia, mas que sente entretecer-se na sua própria ideia do mundo as dores íntimas que foram sentidas por uma geração demasiado nova para compreender o terror do franquismo, demasiado velha para esquecer, e que carregou pela vida fora essa aprendizagem feita entre a fome e o frio, na desolação aventurosa da capital de uma revolta imensa.

As personagens confundem-se, as vozes trepam umas pelas outras, guiam-se, domam o mundo ou, em alternância, são devoradas por ele… A consciência vai emergindo como uma razão impura, cheia de falhas, enlevos. Nisto, o fim há-de ser a coisa menos certa quando se trata de um escritor como Juan Marsé, um dos grandes narradores da língua espanhola, que morreu na noite deste sábado no Hospital de Sant Pau de Barcelona, aos 87 anos, na sequência de complicações relacionadas com a insuficiência renal de que sofria há vários anos. “Sempre tive mais confiança na escrita do que no blá-blá-blá.” É natural que preferisse responder por escrito, fosse a um simples inquérito, fosse a um interrogatório mesmo à beira do fim, seja desses que servem para obter uma confissão para trancar o inferno nalgum relatório, seja desses com que a História se livra dos seus problemas de consciência. De qualquer modo, Marsé preferiu pôr em destaque a linha viciosa com que as nossas percepções se cosem, e, assim, como quem busca companhia por uma noite, como quem se entrega ao passado para fazer algum sentido dele ou apenas deixar-se magoar até um certo ponto, o escritor entra numa divisão escassamente iluminada, e entrega-se às armadilhas e às ciladas que nos prega a memória, “essa puta tão distinta”.

Um dos nomes mais relevantes da chamada Escola de Barcelona, que incluía tantos outros poetas e escritores de nomeada, figuras de origens tão distintas e que criaram laços fortes sob a vigilância castradora do Estado, figuras como Jaime Gil de Biedma, Carlos Barral, Manuel Vázquez Montalbán ou Juan Goytisolo. Num plano mais amplo, o escritor integrou a Geração de 50 mas teve de penar antes de atingir algum reconhecimento. Como lembra Arturo Pérez-Reverte, Marsé foi ignorado durante décadas pelo “nacionalismo local”, enquanto se diluíam as marcas do franquismo e a democracia se enraizava num terreno social e moral absurdamente conservador, e só então, depois de ser um dos preferidos durante anos, acabou por ser distinguido com o Prémio Cervantes em 2008. Para Reverte desaparece “o último dos nossos clássicos”, um homem que levou a vida de um “guerreiro, honesto e solitário”. Nascido Juan Faneca Roca, em 1933, a mãe morreu durante o parto e ele foi dado para a adopção, crescendo pelas ruas de bairros como o Carmelo, Guinardó e Gràcia, que viriam depois a ganhar um relevo literário nas páginas dos seus romances e contos.

A sua escrita é dominada por um tom impaciente, às vezes rude, sempre mordaz, com uma dose de ironia própria de quem tem contas a ajustar com o mundo, e que não se mete a bater a uma máquina de escrever para se erguer depois e passear-se pelo quarto a ler alto como quem se perfumasse e ficasse encantado com o seu reflexo ao passar em frente ao espelho. Marsé não se mostrou nunca interessado em perder tempo com rodriguinhos literários… “lembre-se do que disse Nabokov: ‘De nada serve ler um romance se não se lê com a medula.’ Ainda que leias com a mente, o centro de fruição artística encontra-se entre as omoplatas, um formigueiro na medula espinal.” Começou a ensaiar as suas primeiras narrativas nas revistas Ínsula e El Ciervo, e em 1958 publicou o romance “Últimas Tardes con Teresa”, obra que fez saber ao público espanhol que um adversário formidável o esperava no ringue, e também que o seu rosto duro, de lutador de boxe, era a melhor sinopse para qualquer coisa que tivesse já escrito ou viesse a escrever dali em diante.

Adoptado pelo casal Marsé, com treze anos viu-se obrigado a começar a trabalhar, tendo arranjado um posto como ajudante de joalheiro, e a necessidade de ter um sustento que lhe servisse para pagar as contas, e até a alimentação foi uma consequência do encarceramento do pai, que era militante de um partido da esquerda catalão. Juan tinha péssimas notas, e desde logo um zero a comportamento, mas na maior parte dos dias nem ia à escola, tendo começado muito cedo a fazer trabalho de campo, não imaginando então que os cenários tumultuosos em que passou a sua adolescência viriam a dar forma ao seu universo literário.

Nesses tempos, no ambiente em que Marsé cresceu, a escrita nada tinha a ver com um passatempo ocioso, quanto mais não fosse porque, de súbito, aqueles miúdos davam por si numa cidade sitiada, num país que lhes era hostil, e eles, “os filhos da ira”, integram essa geração que viu entrarem a marchar pelas ruas criaturas da Idade das Trevas que, mesmo depois da guerra, persistiram enquanto fantasmas, desses que só uma poderosa magia poderia esconjurar. A escrita veio a ser para muitos a única arma que a sua consciência lhes oferecia. E, depois de outras formas inconsequentes de revolta, Marsé virou-se para a narrativa breve, e mostrou alguns desses textos a uma amiga, Paulina Crusat, que por sua vez os recomendou a José Luis Cano, que estava então à frente da Ínsula. O escritor começou também, por esses dias, a dedicar-se a outra das suas paixões – o cinema – publicando críticas na revista Art–Cinema. De resto, se mais tarde Marsé viria a colaborar na escrita guiões, vários dos seus livros foram alvo de adaptações ao grande ecrã, e isto porque a sua obra se presta a essa recriação, sendo uma escrita balançada por essa projecção, seja nas imagens seja no recorte das frases, que assaltam o leitor como furiosas legendas para uma fita que por qualquer razão se extraviou. É uma escrita de quem tem o entusiasmo de expor uma cena com o destempero de algo que, ao invés de ser seguido à distância, pretende alucinar-nos.

Aos 22 anos, Marsé foi chamado a cumprir o serviço militar, e serviu-se dos intervalos e das folgas para ir rascunhando o seu primeiro romance, “Encerrados con un solo juguete”, livro que daria como terminado em 1958, tendo sido um dos finalistas do Prémio Biblioteca Breve, em 1961. Entretanto, por esses anos foi aconselhado por Gil de Biedma e Carlos Barral a mudar-se para Paris, onde arranjou um trabalho como assistente laboratorial no departamento de Bioquímica Celular do Instituto Pasteur. Foi ali que conheceu o Nobel Jacques-Lucien Monod, cuja apaixonada militância comunista o inspirou a filiar-se no Partido espanhol, tendo-se sujeitado à sua disciplina nos quatro anos que se seguiram. Pertencendo às classes desfavorecidas, essa breve incursão no terreno idealista não era para durar, e quatro anos depois o escritor desligou-se do partido, farto da sua “intransigência”, e pouco mais lhe terá ficado desse envolvimento nas causas políticas do que um desprezo pela sociedade burguesa. Marsé nunca quis dar-se como cidadão da utopia, e a sua convicção prendia-se mais com um certo desprezo por esses grandes projectos sociais que conduzem à cegueira: “Não percamos tempo com parvoíces. Não sou militante de nenhuma bandeira. Flaubert dizia que estão todas cheias de sangue e merda e que já vai sendo tempo de acabar com elas. (…) A identidade nacional não me interessa nada. Trata-se de uma vigarice sentimental. Sou um mau patriota não remunerado. (…) A pátria que os nacionalistas me propõem é um cadáver sentimental.” (“Essa Puta Tão Distinta”).

Mais tarde, ao justificar a sua filiação no PCE, Marsé explicou que este “era o único partido que fazia alguma coisa contra Franco”. O ódio do escritor à ditadura não se ficava pelo regime e pela perseguição que fez aos dissidentes, mas abrangia a cultura conservadora que persiste e que garante que Madrid é ainda a capital de uma certa forma de ranço, desde logo pelas ligações entre a monarquia e a Igreja. “Sou mais do que laico, sou decididamente anticlerical. Enquanto a Igreja Católica não pedir perdão pela cumplicidade com a ditadura franquista, declarar-me anticlerical é o mínimo que posso fazer. Gozo de uma saudável clerofobia desde a mais tenra adolescência.”

Na sua estada em Paris, além de se ter dedicado à tradução, teve um outro encontro que foi crucial para a sua obra. Deu aulas de espanhol à filha do pianista Robert Casadesús. Teresa encantou-o de tal modo que é a ela que se deve o nome do mais célebre dos seus romances.

Em 1962, regressado a Barcelona, publicou “Esta cara de la luna”, obra que acabou por renegar, não permitindo a sua reedição. Três anos depois, “Últimas Tardes con Teresa” obteve o Prémio Biblioteca Breve e, em 1983, viria a ser adaptado ao cinema por Gonzalo Herralde. O modesto sucesso do livro foi o que lhe permitiu deixar o trabalho na joalharia, vivendo de colaborações no universo editorial, fosse escrevendo as badanas para os títulos publicados pela Planeta, fosse fazendo biscates como publicitário ou colaborando com Juan García Hortelano na escrita de guiões cinematográficos. Foi nesses anos que encontrou o registo que fará dele um desses cronistas capazes de envergonhar o passado, vingar-se das humilhações que ele e tantos dos jovens com quem cresceu sofreram. “La oscura historia de la prima Montse” (1970) marca essa afinação de tom e de propósito, de tal modo que a ficção, ao invés de ser um convite a uma errância que vaga ao sabor do que lhe soprem os ventos da imaginação, passa a ser simultaneamente uma forma de vingança e de resgate. “Na minha ficção, a vivência real submete-se à imaginação, que é mais racional e credível. Na parte inventada está a minha autobiografia mais verídica”, escreveria Juan Marsé.

Seguiu-se o romance “Si te dicen que caí”, a obra em que alcança a plena madurez dos seus poderes ao propor-se regressar à infância e articulá-la numa narrativa complexa, com saltos temporais que tocam diversos momentos da ditadura franquista, pondo em xeque a narrativa oficial, o que levou a que o livro fosse censurado em Espanha. Foi isso o que levou Marsé a publicá-la no México, onde o romance viria a ser galardoado com o Prémio Internacional de Novela, o que significou um passo decisivo para a afirmação do escritor além-fronteiras. E refira-se que, desde esses dias, Marsé viria a ser traduzido em mais de 30 idiomas. Em 1976, o livro teria finalmente uma edição espanhola, e, em 1989, foi adaptado ao cinema por Vicente Aranda.

Mas se o êxito junto da crítica foi sendo construído a par e passo, foi só em 1978 que o público acolheu verdadeiramente Marsé, isto depois de ter conquistado o Prémio Planeta com “La muchacha de las bragas de oro” – outro título que não demoraria a ser adaptado ao cinema. Nos anos que se seguiram, o escritor continuou a publicar com regularidade e cumulou-se de prémios, o que não fez dele uma dessas figuras complacentes e acomodadas, outro desses indígenas do meio literário, que não só aceitam como defendem a lógica hipócrita com que o negócio editorial tem primado sobre a literatura. Assim, em 2004, demitiu-se do júri do Prémio Planeta, enojado com um processo que tem levado a que, em nome do sucesso comercial, as instâncias críticas se demitam ou assumam uma postura servil, ajudando à difusão de obras “embaraçosamente inanes”. Num artigo publicado anos mais tarde no El País, Marsé recorda as agruras por que passou para se desvincular daquela encenação, e descrevia com algum pormenor as negociações a que se viu obrigado a submeter-se com o presidente do grupo Planeta, José Manuel Lara, sem deixar de expor a lógica promocional que leva uns críticos a soldo, mercenários que dizem o que for preciso para vender qualquer “artefacto entediante” sem o menor pudor, e tendo o descaramento de dizer ao público que se trata de “um romance que vai mudar o curso da literatura contemporânea”. 

Na altura, para não bater com a porta e provocar um escândalo, Marsé aceitou sair de mansinho, mas contava que, em troca, Lara fizesse algumas mudanças na forma como estava a ser feita a atribuição daquele que é, em termos monetários, o maior prémio literário a seguir ao Nobel. É claro que Lara acabou por não cumprir com a sua palavra e tudo ficou na mesma. Entretanto, Marsé tinha pedido que o escusassem da sessão de imprensa pois não queria ser obrigado a mentir, mas o presidente da Planeta afiançou-lhe que os jornalistas de cultura quase nunca faziam perguntas, limitando-se a engolir o que quer que lhes dissessem. Ora, o que aconteceu foi que quando Marsé foi questionado pelo nível médio das obras a concurso, não esteve com rodeios e disse: “O nível de qualidade média este ano não era baixo, era subterrâneo.”

Depois desta cena, não faltou quem viesse acusar Marsé de ter assumido uma postura pretensiosa, incongruente e mal-agradecida (tendo ganho aquele mesmo prémio em 1978), além de ingénua, pois, como afirmou um jornalista, no jantar antes dessa sessão de imprensa, já se sabia quem iria ganhar o prémio (Maria de la Pau Janer), ou seja, estavam todos envolvidos na falcatrua, o que levou o escritor catalão a considerar essa sessão uma enorme vergonha profissional para os órgãos de comunicação, afirmando ainda que, embora se sentisse embaraçado por ter-se deixado arrastar para esse espectáculo, uma década mais tarde não só não se arrependia de o ter denunciado como, se pudesse voltar atrás, o voltaria a fazer.