Bernard-Henry Levy. Em fúria, contra as imposturas do tempo corona

Bernard-Henry Levy. Em fúria, contra as imposturas do tempo corona


A Bernard-Henry Lévy, em Este vírus que nos enlouquece (Guerra e Paz, 2020), um ensaio-denúncia, não lhe doem as mãos, o sarcasmo e o azedume contra os que vê como vendilhões do templo: os que abdicaram da política e a transformaram em um monolítico, redutor e perigoso poder médico-científico; os que antropomorfizaram a natureza, fazendo-a…


O breve mais incisivo ensaio de Bernard-Henry Levy sobre o tempo pandémico pode contar-se como elenco, inventário apaixonado e em fúria (p.102), das ignomínias da crise. Desde logo, a assimilação/redução de uma visão de bem-comum – susceptível de convocar, em simultâneo, ao bom conselho do príncipe e da Administração, historiadores, psicólogos, filósofos, economistas, sociólogos, políticos, professores, profissionais de saúde… – à ascensão do poder médico (exclusivo). Não é, apenas, que “um médico (…) de nariz enfiado nos casos, sem conseguir ver para além dos órgãos que possui (…) prolongaria o estado de emergência sanitária até ao fim dos tempos” (p.31), não se ponderando, desta sorte: o estado emocional-psicológico em que ficariam aqueles confinados ad eternum; os que morreriam, em um tal circunstancialismo, de outras patologias que não a covid-19; o aumento das desigualdades sociais, que adviria daquela perspectiva, muito em particular com o fecho das escolas; a queda absoluta da economia e um desemprego de proporções gigantescas que se tornaria insuportável. Não é apenas, nem sobretudo, esta ausência do sopesar, a partir de ângulos diversos e com decisão final de quem se legitimara, politicamente, para o fazer, do mal-menor, observada durante uma parte significativa do que vivemos já de pandemia, que o filósofo francês visa. Mais radicalmente, ele recorda Bachelard para dizer que “«a verdade científica», a que nós nos adoramos entregar, não é mais do que um «erro rectificado»”(p.23) e os médicos “não estão mais vacinados do que os políticos contra prognósticos perigosos” (o ensaísta, neste contexto, evoca a desvalorização, por diferentes profissionais de saúde franceses, do novo coronavírus, em uma etapa de que também, em Portugal, se recordam declarações de autoridades de saúde que se tornaram virais, nomeadamente nas redes sociais, pelo desmentido contundente que o tempo e a realidade impuseram às mesmas); mais, Henry Lévy faz um levantamento histórico da caução médico-científica, não raro aproveitada, quando não conluiada, por/com regimes tirânicos, em especial no século XX, de atrocidades sobre o humano (máxime, políticas de eugenia; vide pp.28-29).  

Entendamo-nos: os médicos, durante esta pandemia, foram “homens e mulheres admiráveis, na linha da frente da epidemia, heróis do dia-a-dia arriscando as suas vidas para salvar a nossa, sublimes na sua dedicação” (p.23). Porém, o seu lugar não é o do político, sendo deste, aliás, a responsabilidade de lhes outorgar, erradamente, durante certo lapso de tempo, tal posição (política) que os teria deixado, inclusive, desconfortáveis (“o presidente do Conselho Científico (…) anuncia desconcertado ao Comité de Leis do Senado [francês] que a faculdade «decidiu» adiar o «desconfinamento» de «18 milhões de pessoas em risco” (p.31)). Se, concatenando autores trazidos a estas páginas – e que escreveram também sob a forma de livro acerca do momentum corona -, a invocação de Bachelard, por banda de Bernard Henry-Levy, concorda com a perplexidade popular, nem sempre conhecedora bastante da natureza do conhecimento científico  – aspecto sobre o qual Edgar Morin, nos alvores da crise, imediatamente aludiu, apontando ilusórias e inatingíveis expectativas cidadãs, em uma visão mágica acerca da ciência, quanto ao tempo e o modo de solucionar ou, pelo menos, mitigar de forma substantiva, o problema pandémico -, sobre a discrepância de pronunciamentos científicos acerca das mesmíssimas questões/temas/pontos em análise na jornada em que nos inserimos, já apontada por Paolo Giordano; e se, o que escreve o ensaísta francês, quanto à recusa do político como técnico, não deixou de ser subscrito por aquele Físico ou pelo filósofo Daniel Innerarity, há, contudo, uma valorização, por este último – e ausente na reflexão de Henry-Lévy -, da expertise, de um conhecimento pericial que não permite situar em puro ermitério, e arbítrio sem moderação, a decisão política a quem a cabe (o que, de resto, combina bem com as teses do filósofo basco sobre uma democracia robustecida por órgãos que aportam um conhecimento que não confina, necessariamente, com espaços temporais demasiado curtos atinentes aos ciclos eleitorais comuns nas democracias ocidentais, contribuindo para a emergência dessa estrutura inteligente colectiva que visa dever formar-se). Ademais, dir-se-ia que, situado e adoptando uma dada perspectiva sobre o bem comum indissociável dos seus lugares de inscrição – como em uma outra atividade ou ofício -, o olhar médico, merecendo, é certo, ser completado por outros olhares/conhecimentos (“os médicos podem ser heróis, mas não são Deus Pai”, p.32), não tem aquele, em qualquer caso, por que “ficar de nariz enfiado nos próprios casos”, não se lhe atribuindo, necessariamente, essa exclusiva identificação com a doença covid-19 – o que, aliás, se reconhece na diversidade de respostas sugeridas, por profissionais desta área, quanto ao melhor modo de reacção – pública, nomeadamente, para o que aqui, agora, importa – à pandemia (por exemplo, a constatação de diferentes posturas de epidemiologistas, sobre os mesmos tópicos, incluindo a extensão do confinamento, assim o evidenciaria). E, em definitivo, arbitragem política impôs-se muito naturalmente, neste ínterim, pelo que o político, se esteve mais disposto, em uns casos, mais contrariado noutros, a escutar, ou a estribar-se, nos clínicos e seus pareceres, teve, mesmo, que tomar decisão autónoma. 

O vírus não fala, a natureza não tem nenhuma mensagem para dar (“e eis que surge, finalmente, uma parvoíce: a ideia de que o vírus fala connosco; que ele tem uma mensagem para nos entregar (…) como se um vírus pensasse! Como se um vírus soubesse! Como se um vírus quisesse!”, pp.38-39), e muito menos legitima aplausos e candura, quer dizer, crueldade em loas aos animais que de repente apareceram ou ao céu que passou a estar tão azul: “a ideia de que o vírus não é totalmente mau, que tem uma certa virtude oculta e que, participando nesta «guerra», até temos motivos para nos alegrar” (p.36). Alegria, por certo, dos que permanecem quando tantos caíram a golpes do vírus, alegria dos que não têm mortos (ou doentes graves) por lamentar – “ah, o júbilo feliz (mas, no seu âmago, tão cruel) de celebrar a «vingança» da realidade sobre a arrogância dos homens e dos pecados! A astúcia desses flageladores que lutam, às costas das vítimas, para repreender os sobreviventes e sobrecarrega-los com as suas críticas!” (p.37). Não há intencionalidade no vírus. Diversos vírus sempre aí estiveram, acompanhando o humano na sua já não menosprezável caminhada (histórica). O Sars-Cov 2 não ataca, porém, agora, biblicamente, os primogénitos, mas todo um povo (a língua grega inventou epi demos, literalmente sobre o povo). Talvez, de qualquer modo, ao investigador não faltasse ocasião e interesse para inquirir as circunstâncias históricas em que emerge o novo vírus – e se tal circunstancialismo permite ou não qualquer tipo de posicionamento/intervenção política que vise confinar ocasiões sucedâneas desta (os epidemiologistas que nos alertam não apenas para mercados de animais selvagens que deviam ser encerrados, mas, bem mais, os especialistas que descortinam no aumento de inserção humana em áreas tidas como interditas à nossa espécie o potencial multiplicador do marcador viral). 

A demagogia, quando se determinar que existiu, não será apenas do ideólogo que coloca o vírus ao seu serviço não curando das vítimas nas quais se apoia; ela estende-se aquela igreja pentecostal que anuncia no vírus o castigo advindo da ira divina pela devassidão dos costumes (humanos). 

Pretendendo-se sofisticada, a boa da elite desloca-se para os campos da Normandia (ou, entre nós, para os exclusivos resorts alentejanos). Ali, finalmente, um momento para a “verdadeira vida,” o encontro com o «eu», longe da azáfama das coisas frenéticas. O “delicioso confinamento”, desta vez às costas de Pascal: «toda a miséria dos homens advém de não saberem permanecer em repouso num quarto». E, todavia, para Pascal, estar em repouso num quarto “não era uma sinecura, mas uma ascese, uma prova, uma experiência metafísica dolorosa, quase insuportável, por nos confrontar com a nossa finitude” (p.54). Mais: “essa prova consistia em não fazer nada, rigorosamente nada, e certamente que isso não contempla a culinária, o jardim, os passatempos insignificantes (…), os aperitivos via Zoom acompanhados com cerveja, as fotos do «Eu aborrecido» postadas na mesma conta de Instagram em que eram partilhadas, na semana anterior, as selfies das férias. Esqueciam-se apenas de que essa prova era, para Pascal, a experiência não só do nada, mas da vertigem e do horror infinito desse nada” (pp.54-55). Numa palavra, “que o confinamento tenha sido sanitariamente necessário era uma coisa (…) Mas tirar prazer deste confinamento (…) não ser sensível aos perfumes obscenos de que estava carregado (…) a estranha sensação de estar mobilizado para a desmobilização, de ser solidário à distância (…) isso era (…) de uma enorme indecência” (pp.55-56), um “insulto aos que não tinham casa onde ficar, uma ofensa para os sem-abrigo (…) para os indocumentados (…) para os migrantes (…) troçar dos pobres entre os pobres que, de facto, têm casa – mas uma casa tão precária quanto as favelas do Rio ou as townships de Joanesburgo, de onde só poderiam querer sair” (p.56).

Se havia uma pretensa sabedoria nesta redescoberta da relação consigo mesmo (entendida, pelos que se abalaram ao campo, como “a mais fértil das relações”), ela ia, e aqui reside talvez o principal e mais interessante ponto do livro de Henry-Lévy, contra todas as sabedorias que, historicamente, nos tinham legado, cimento comum: contra a sabedoria grega, “que fazia do homem, desde Aristóteles, um animal político”; contra Descartes que sabe que a experiência da dúvida, do cogito, “é apenas um momento de uma consciência que deve, o mais cedo possível, reencontrar o gosto pelas ciências, pela medicina, pela moral provisória e definitiva, pela especulação intelectual, pela amizade, pelo mundo” (p.57); contra os ensinamentos da fenomenologia de Husserl, na medida em que entende que “o verdadeiramente interessante, num sujeito, não é aquilo que ele é, mas aquilo que ele faz e a maneira como, ao fazer-se, habita o mundo, o forma e estabelece com ele uma troca”(pp.57-58); contra a injunção de Levinas: “primeiro o outro; o eu, de acordo, mas na condição de que se dirija imediatamente ao outro, o encontro, o deixar-se levar, o extravasar, o exceder-se através da alteridade; o ele próprio, sim, se o desejarmos, mas partindo do princípio que é capaz de outrar-se, de se expatriar, de exceder os seus limites e de se fazer o anfitrião, o refém, o possesso do próximo” (p.59). E a frase de Hilel – “se eu não for por mim, quem será? – terá quer ser lida na íntegra – “se eu só for por mim, que sou eu?” (p.61). 

E nem se invoquem, como caução para fincar um dito doce remanso, textos de primeira grandeza, escritos enquanto os seus autores se encontravam em cativeiro, de alguns dos maiores literatos da história ocidental – O Covil, de Kafka; a Viagem à volta do meu quarto, de Xavier de Maistre; Genet na prisão; Holderlin na sua torre; Proust, claro; Barthes no sanatório; Montaigne na sua livraria; a Montanha Mágica, de Thomas Mann; Alexandre Vialette e René Daumal, os tuberculosos; René Crevel em Davos; Os cativos, de Kessel; a quarentena de Thomas Bernhard em O Frio; Wilde e o seu De Profundis; Sade; Villon; Dostoiévski; O deserto dos tártaros, de Buzzati…- porque está por provar a emergência de verdadeiras obras-primas neste período confinado (nosso) e porque muitos dos vindos de mencionar eram verdadeiros loucos (Proust), loucos furiosos (Holderlin recluso por trinta anos em casa do marceneiro Ernst Zimmer), ou, simplesmente encarcerados (Sade, Xavier de Maistre, Ezra Pound, Dostoiévski, Villon) e nenhum deles olhou para a clausura como uma oportunidade (pp.63-65). Os textos de Crevel e Genet eram de “revolta contra o lodaçal, a viscosa intimidade gástrica, a digestão enzimática de si próprio que é, dizia ainda Sartre, o enclausuramento em si próprio. Eles sabiam que o quarto de Pascal, o de Descartes e, por maioria de razão, o seu eram quartos sombrios, lugares insalubres e de ressentimento – eles sabiam que não se é nada quando se está só, que a maioria do tempo é passado a pensar em nada e que o Inferno não são os outros, sou eu” (p.66) – e, de resto, teremos, mesmo, consciência que elemento é esse, recoberto de nódoas e sujidades para as quais não ousamos olhar, o corpo de um Homem? (“esse corpo, o corpo por si só, o corpo doente ou são, que esquecemos que é o espírito que alumia com o seu relâmpago e que o formula, o corpo orgânico, não passa de um amontoado de matéria opaca e tenebrosa; (…) essa matéria opaca, esse corpo sem luz e sem alma, essa carne que tratamos como se estivesse desligada da inteligência humana e dos seus projectos, esse corpo reduzido apenas à soma dos seus órgãos, dos seus humores e nervos, eis precisamente o Inferno…O Inferno, para o Maharal de Paga, não é como, para Pascal, o eu. Nem como, para Sartre, os outros. Nem sequer o quarto sombrio de Gent, Crevel e os demais. O Inferno é o corpo. Apenas e somente o corpo. O Inferno são vocês, sou eu, somos nós – na medida em que o consentimos, enclausurados que estamos nos nossos corpos, reduzidos à nossa vida de corpo, sob o império do poder médico ou simplesmente do poder”, p.72).

Há um curioso paradoxo no livro de Henry-Lévy: principia por lamentar todo o alarido e a paralisação global face ao vírus – uma atitude de servilismo do humano face vírus é por si notada -, regista o esquecimento de outras tragédias idênticas no passado e concorrentes no presente (do Daesh em Moçambique, às liberdades abandonadas da Chechénia, passando pelas múltiplas tragédias dos habitantes do Bangladesh ou dos refugiados) completamente apagadas do noticiário e do nosso imaginário, espanta-se com o humano que larga tudo o que é essencial – incluindo a oração comunitária presencial – para se fechar, em pânico pelo vírus, na vida nua (Agamben), a vida exangue, ao mesmo tempo que nota uma não tomada a sério da tragédia (uma “oportunidade”, um mal que veio por bem, segundo múltiplas vozes). Ainda que ignorando que muito deste fechar foi feito em nome do outro (não o contagiar), o recordar, por Bernard Henry-Lévy, de uma “vida boa” – e não apenas mera manutenção biológica: “a vida não é a vida se for apenas vida…”(p.80) – como desígnio, e esta só tendo sentido em expandindo-se para o outro – era o pensamento de Nietzsche quanto a vida nunca ser aquilo que é, “e que, se não tende para outra coisa, se não aspira à grande vida, se não abre as escotilhas do corpo à inteligência dos outros e das coisas, deixa de merecer que lhe chamem vida” (p.80), “é a sabedoria de todas as filosofias (…) só pode durar-se pela acção, ou pela contemplação, ou pelo esforço espinosiano para aumentar a potência do ser, ou pelo beijo divino sair do confinamento que representa a vida no estado nativo. É a mensagem de todas as aventuras humanas. É a mensagem da arte. É a mensagem da literatura em busca do «grande caminho», dizia Sartre, onde aquilo que nos é mais íntimo se vai revelar na luz ofuscante da cidade, da multidão, do mundo – até Beckett, pintor de uma humanidade desesperadamente confinada, que começa À espera de Godot com: «Uma estrada no campo. Uma árvore» …”(p.81) – não deixa de ser um alerta para uma estação maior do que a covídica.