Qual entrevista sobre a cena da manteiga envolvendo Marlon Brando e Maria Schneider em O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, as polémicas sobre o (há muito) dito repetem-se. Uma entrevista com décadas torna-se viral e o outrora intocável entrevistado cai, com o seu nome, na desgraça para que o século XXI o atirar.
Em tempos em que o racismo continua na ordem do dia ainda devido às manifestações (e contramanifestações), vandalização de estátuas erigidas a personalidades que no seu tempo defenderam ideias racistas e à discussão pública que se seguiram à morte de George Floyd às mãos da polícia norte-americana, reemergiu do esquecimento também uma entrevista que John Wayne concedeu à Playboy há quase meio século em que defende a “supremacia branca” e, entre declarações racistas várias, tece duras críticas a filmes que, por conterem cenas gay, classifica de “pervertidos”. Referia-se a “Easy Rider” (1969), de Dennis Hopper, e a “Midnight Cowboy”, filme do mesmo ano dirigido por John Schlesinger e protagonizado por Dustin Hoffman e Jon Voight. Foi o vencedor dos Óscares de Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento adaptado em 1970, o ano em que também Wayne venceu na categoria de Melhor Ator, o único Óscar da sua carreira.
Mas o que dizia ao certo Wayne? “Acredito na supremacia branca até que os negros sejam educados e responsáveis. Não acredito em dar autoridade e posições de liderança e de julgamento a pessoas irresponsáveis”. Ou: “Não me sinto culpado pelo facto de há cinco ou dez gerações estas pessoas terem sido escravas”. Disse também não sentir qualquer espécie de remorsos pela subjugação dos nativos americanos: “Não sinto que tenhamos feito mal ao tomar-lhes este grande país. Aquilo a que chamam roubo foi uma questão de sobrevivência”. Ou ainda: “Havia muita gente a precisar de novas terras, e os índios estavam a tentar de forma egoísta ficar com elas”.
Declarações chocantes, por anos disfarçadas (ou desvalorizadas) pelo outro lado da moeda: John Wayne não é Bertolucci. Carinhosamente apelidado de “Duke”, John Wayne, uma das estrelas maiores dos westerns americanos, continua, ainda hoje, a ser apontado por sondagens como a estrela de cinema mais querida dos norte-americanos. Ou continuava. Por apurar estão agora os danos que o ressurgimento da entrevista e da cadeia de reações que tem gerado, que chegaram já ao Partido Democrata, causarão à imagem do ator que participou em cerca de centena e meia de filmes ao longo de uma carreira que se estendeu por 50 anos e que lhe deu em 1970 o já falado Óscar de Melhor Ator por “Velha Raposa”, dirigido por Henry Hathaway a partir da obra de Charles Portis, que lhe valeu também um dos três Globos de Ouro com que foi distinguido.
É do ano seguinte a entrevista no centro da polémica. E foi também na verdade já depois daquela entrevista datada de 1971 que, em 1979, o aeroporto construído na década de 1920 viu o seu nome alterado para John Wayne. Agora que a entrevista se tornou viral, os democratas de Orange County, no sul da Califórnia, aprovaram uma resolução para retirar o nome do ator do aeroporto – de acordo com dados de 2014, o segundo mais movimentado daquele estado norte-americano.
Uma polémica com outros capítulos A resolução, que pede a redesignação do aeroporto para um simples “Orange County Airport”, foi aprovada já na passada sexta-feira, mas foi ontem que se tornou pública a intenção, depois de a notícia ter sido avançada pelo Los Angeles Times. “O Partido Democrata de Orange County condena as declarações racistas e preconceituosas de John Wayne e pede que o nome e imagem de John Wayne sejam removidos do aeroporto de Orange County, e pede aos supervisores que seja reposto o seu nome original: Aeroporto de Orange County”, diz a resolução aprovada na sexta-feira. A decisão final caberá agora ao Conselho de Supervisores de Orange County.
Segundo o comunicado da presidente do partido naquele condado, Ada Briceño, citado pelo mesmo jornal, o assunto pode ser novo no resto do mundo, até no resto da América, mas em Orange County há muito que as posições de John Wayne são conhecidas. E, sublinha, não é também de agora a vontade de alterar o nome do aeroporto onde foi também erigida uma estátua a “Duke”, como ficou conhecido. “Enquanto alguns fora de Orange County podem não conhecer as crenças de John Wayne sobre a supremacia branca, muitos dos residentes de Orange County pedem a sua remoção há anos”, afirma ainda Briceño. “Estamos a ver pedidos renovados para isso agora, e é tempo de mudança”.
A tentativa de retirar por uma vez o nome de Wayne do aeroporto corresponde, segundo os subscritores da iniciativa, a “um movimento nacional de remoção de símbolos e nomes supremacistas que está a redefinir as instituições, monumentos, negócios, associações e ligas e equipas desportivas americanas”.
Wayne, a Direita e Trump Esta não é, contudo, a primeira vez que a entrevista viraliza na Internet. Já em fevereiro de 2019 o próprio filho de Wayne tinha sentido necessidade de justificar publicamente as declarações do pai, afirmando ter-lhes sido retirado o contexto. “Estão a tentar contradizer [a forma] como ele viveu sua vida, e a forma como viveu a sua vida era [é que correspondia a] quem ele era”, afirmou na altura em que se levantaram as primeiras vozes exigindo a alteração do nome do aeroporto. “Qualquer discussão sobre a remoção do seu nome do aeroporto deve incluir uma imagem completa da vida de John Wayne e não basear-se numa única entrevista isolada de há meio século”, disse ainda na altura Ethan Wayne.
Desta feita, não foi um familiar que procurou salvar a memória do ator, foi o próprio Presidente norte-americano a insurgir-se contra a onda de indignação gerada pela entrevista. Em resposta à iniciativa dos democratas de Orange County, Donald Trump escreveu no Twitter: “Conseguem acreditar que Princeton acabou de retirar o nome de Woodrow Wilson do seu respeitado centro de políticas. Agora os Não Fazem Nada [dos] Democratas querem retirar o nome John Wayne de um aeroporto. Estupidez incrível”, partilhou, com um ponto de exclamação.
Se o apoio de Trump não bastasse, lembra agora o Guardian que, em vida, John Wayne defendeu causas de direita. E a simpatia de Trump pela estrela de westerns não pode ser esvaziada do seu contexto: em 2016, a filha de Wayne apoiou a campanha de Donald Trump na corrida à Casa Branca. “A razão pela qual estou aqui a apoiar Trump é porque a América precisa de ajuda”, dizia Aissa Wayne em declarações agora recuperadas pelo diário britânico. “Precisamos de um líder forte. E precisamos de alguém como Trump, com qualidades de liderança, alguém com coragem, alguém que seja forte como John Wayne”. E acrescentava, depois da comparação entre o agora Presidente e o seu pai: “Se John Wayne andasse por cá, estaria aqui na minha vez”.