1. Em finais de outubro último, El País e a Cadena Ser organizaram, conjuntamente, um importante fórum sobre o silenciamento a que as questões da depressão e do suicídio estão sujeitas (nas nossas sociedades), no qual intervieram reputados especialistas da área da psiquiatria, da Organização Mundial de Saúde, jornalistas, pessoas que passaram pela experiência da depressão e da tentativa de suicídio. São alguns dos elementos que me pareceram mais relevantes desse encontro, complementados com outros estudos que compulsei sobre a matéria, de que hoje aqui dou conta.
2. Há 300 milhões de pessoas deprimidas em todo o mundo; 1/6 da população europeia passou, em 2016, por um problema de saúde mental; a Organização Mundial de Saúde prevê para o ano de 2030 que a primeira causa de incapacidade seja a depressão. Face à depressão, em múltiplas circunstâncias, os doentes sentem-se culpados, os familiares e amigos impotentes. Na maior parte dos casos, a depressão tem cura. Piora, se não se trata. Muitas vezes, a depressão não começa com a tristeza, como pensamos, mas com a falta de significado para a vida, a ausência de (um) propósito. A sociedade é cada vez mais exigente, e o indivíduo tende a desconectar-se de si mesmo para dar resposta à sociedade. Uma sociedade dividida entre vencedores e fracassados, uma sociedade que se olhe, como muitas vezes se olha, desta forma contribui para semelhante estado de coisas. A depressão é de difícil detecção – e não apreendemos o lado sensível dos outros, em demasiadas ocasiões.
3. Cerca de 800 mil pessoas suicidam-se, por ano, no mundo (cerca de uma a cada 40 segundos); as tentativas multiplicam-se por 20. Entre os jovens que têm entre 15 e 29 anos é a segunda causa de morte (e a primeira causa não natural). A Finlândia estava à cabeça, de entre os países com maiores taxas de suicídio, em 1990. Mas agora os finlandeses acercaram-se dos 11 suicídios por 100 mil habitantes (da média europeia). Hoje, a Finlândia será um dos países do mundo onde os homens falam mais livremente das emoções; as crianças e jovens aprendem a defini-las na escola – existem mais de 300 emoções e o aumento do vocabulário emocional aproxima as pessoas. Há até uma app para procurar fornecer ajuda a todo o momento – para lá de alguns notarem a melhoria ao nível do emprego e das condições de vida como mais um factor favorável na Finlândia. Menos diferenças, maior socialização, aumento do cuidado no processo de diagnóstico. Os enfermeiros conseguem identificar, os assistentes numa escola, bem formados por técnicos capazes, devem conseguir sinalizar casos que suscitam a dúvida sobre a existência de depressão na pessoa.
4. As nossas crianças são educadas, por exemplo, para a questão da nutrição, mas não recebem formação sobre o não fazer mal ao outro (e as consequências no outro, desse mal que se lhe faz). Nem para a resiliência, ou, sequer, alertadas, para o sofrimento por que passa aquele que fica fora do grupo. O poder resolver conflitos devia ser ensinado desde que somos crianças, bem como resolver fracassos, situações de stress por que todos passamos. Os finlandeses dão aulas de saúde mental desde a primária.
A pessoa tem que ser útil à sociedade e tem que ter oportunidades (para tal) – o que releva na problemática dos objectivos, de um possível propósito. Banalizou-se a expressão depressão e, não raro, desligamos quando nos falam dela ao café, ou ao ouvido. E, no entanto, a obrigação é fazermos um reforço (positivo) face aquele que assim se nos apresenta, vamos dar um passeio, queres estar comigo? Não vamos provar a uma pessoa que dá indícios de que não estará no seu melhor – às vezes, uma frase solta “não estou aqui a fazer nada” – que (essa pessoa) não está bem. Podemos oferecer-nos para acompanhar o nosso amigo a um técnico; é natural oferecer e dar ajuda. Não podemos deixar a pessoa só, não podemos desvincular-nos da pessoa.
Ninguém gosta de estar ao pé de pessoas tristes, mas o que vale mesmo a pena? Tornar o ambiente mais quente, acolhedor, hospitaleiro. Por vezes, reequacionar opções de vida: trabalhar tanto para isto? Como é que se identifica a sensação de vazio num adolescente? Como perscrutar uma carência profunda num adolescente? Como é que os pais, os colegas, os professores, um não técnico podem identifica-las? As pessoas querem estar em grupo, querem identificar-se com quem está bem e, portanto, não assumem este problema. Há uma clara falta de confiança na sociedade. Nem na relação direta consigo mesmo, nem na relação com o meio se assume o problema. O meio faz sentir o incómodo com uma situação desta índole. A pessoa pode querer não falar, mas devemos fazer-nos presentes. Reconhecer a individualidade e olhar nos olhos da pessoa.
Observo impressionado, mesmo que já sem surpresa, o mapa, inalterado, dos suicídios no Japão: entre 1972 e 2013, de forma ininterrupta, os meses de Abril e de Setembro são aqueles em que se dão o maior número de suicídios no país nipónico. Em Abril, começam as aulas, em Setembro saem os resultados de exames escolares determinantes. Há, até, uma campanha intitulada Setembro amarelo com vista a procurar prevenir o suicídio jovem. O suicídio adolescente na Coreia do Sul, motivado igualmente pelo desempenho educativo, é também muito preocupante.
5. Em 90% dos suicídios há sintomatologia depressiva (às vezes, associada a uma esquizofrenia, a uma aneroxia nervosa; mas aqueles não devem ser vistos como acto de rebeldia). Nem todo o mundo se deprime com as mesmas circunstâncias. Há pessoas mais frágeis. Há muitas depressões e suicídios diferentes. Dissociamos saúde mental e corporal. Não há saúde sem saúde mental. Recusamos reconhecer a vulnerabilidade do ser humano. A nossa (própria) fragilidade. As mulheres deprimem mais do que os homens, mas estes suicidam-se bastante mais – três a quatro vezes – do que elas. No suicídio intervém factores sociais, psicológicos, culturais, ambientais. As condutas suicidas podem, não raramente, prevenir-se.
Ao nível jornalístico, podemos notar um Efeito Papageno (personagem de uma ópera de Mozart, A flauta mágica, que acaba por não se suicidar quando se preparava para o fazer) vs Efeito Werther (personagem que se suicida num livro de Goethe com o mesmo título), consoante a cobertura não sensacionalista, ou sensacionalista, dos suicídios, pelos meios de comunicação social. Informar bem é formar.
A pior parte de padecer de falta de saúde mental é as pessoas esperarem que te comportes como se a tivesses. Falar de saúde mental em Espanha, Austrália e Moçambique é diferente. Um suicídio em África é altamente simbólico e tem uma leitura diversa da que ocorre no Ocidente.
Sobretudo, e a concluir por agora, a depressão não é um traço de carácter, mas uma doença. Uma questão de saúde pública.
6. Escuto, no programa La Ventana, da Cadena Ser, a 9 de outubro de 2019, um vice-reitor de uma universidade espanhola, a quem o filho de 16 anos faleceu, por suicídio, há alguns anos: “É muito difícil encontrar espaços nos quais seja possível falar do suicídio. Nunca mais ninguém volta a falar do teu ente querido e, se se fala, advém o silêncio, ou procura mudar-se de assunto”. O sentimento de ostracismo emerge, pernicioso: “O silêncio mata, é o melhor caldo de cultura para que o suicídio continue a fazer das suas”. É preciso, portanto, falar desta realidade, assumi-la (“olhar para trás é uma forma de terapia”, conta uma jovem sobrevivente a uma tentativa que fez de suicídio, que aponta, no seu caso, a rotura amorosa, a exposição a drogas e a adaptação constante aos colégios por que passou, como factores negativos), procurar prevenir (2/3 das pessoas suicidas deram indícios explícitos; do outro terço, dois terços deles deram sinais implícitos), e também ajudar as comunidades que ficam, a família antes e mais do que qualquer outra (e há quem defenda a necessidade de encontrar nome, para dar visibilidade, aos casos de famílias que passaram por esta situação; por analogia com filhos órfãos, haverá a necessidade de encontrar um nome para a situação dos pais sobreviventes a um desenlace trágico destes de seus filhos), a empresa, a aldeia ou cidade que sentiu o profundo abalo de uma queda. Perceber os sentimentos, desde logo, porventura, mas não apenas, os dedos que as pessoas sentem apontados, injustamente, a si, como se de culpados por este acontecimento trágico se tratasse. Criar estes espaços de conversação, de diálogo, de deixar de assumir o tema como tabu, afigura-se como fundamental.
7. No Fórum de ElPaís/Cadena ser “Depressão e suicídio, o problema silenciado”, um jovem que tentou por cobro à própria vida relata a ansiedade que o impede de dormir, a vergonha de o contar à namorada – somos capazes de contar que estamos com uma grande dor de cabeça, mas de expor que estamos com uma enorme ansiedade – e a sorte em encontrar alguém online, às 4h da manhã, que passa pelo mesmo (e que, estando no mesmo barco, proporciona um certo conforto emocional). Depois, enumera as experiências clínicas, as mais das vezes mal sucedidas: nem todos os psicólogos ou psiquiatras conseguem com ele estabelecer a conexão necessária; de repente, há um com o qual tu fazes um clique. “Eu vi mais uma dezena de psiquiatras, e mais ainda de psicólogos, e nenhum me servia”. E que dizer da ausência de profissionais bastantes nestas áreas, sobretudo se alguém não possui as condições económicas para recorrer ao privado: “às vezes, quando te dizem que pode demorar um ano a teres consulta de psiquiatria e estás com ganas de colocar termo à vida, e não tens dinheiro para ir ao privado, é terrível”.
8. No último verão, foi, entre nós, reeditado (pela Presença) o clássico de Émile Durkheim "O suicídio. Estudo sociológico" (10ª edição). Escrito em 1897, visava demonstrar que, para além dos factores pessoais, do temperamento do suicida, do seu carácter e antecedentes, dos acontecimentos da sua vida privada, a consideração do conjunto de suicídios, numa dada unidade de tempo, em uma dada sociedade traria um facto novo e sui generis. Se nada parece mais íntimo e particular do que um suicídio, Durkheim pretende esclarecer-nos sobre o carácter social – um estudo sociológico – do suicídio. Fazia notar como, a título exemplificativo, os casados cometiam, à época e com os dados de que o sociólogo dispunha, menos suicídios do que os celibatários, ou que os cônjuges com filhos seriam menos propensos a tais atos do que aqueles que não são progenitores. Os judeus seriam, de acordo com as estatísticas então usadas por Durkheim, o grupo monoteísta com menor pendor para o suicídio, cometido em mais larga escala por protestantes do que por católicos.
Como se veio de assinalar, sociedades hipercompetitivas, em que o sucesso educativo é tudo, como sucede em diferentes países asiáticos – como Japão ou Coreia do Sul -, ou outros ainda, em diversas latitudes, que dividem a sociedade em (entre) vencedores e vencidos criam caldos de cultura que, em dadas pessoas, serão propícios a dar o seu contributo a destinos trágicos. O fenómeno do suicídio ocorreu sempre, ao longo da história, mas a sua taxa varia consoante os contextos e as circunstâncias. O facto de o suicídio ser mais um problema de civilização do que outro, poderá ser ainda notado no que à ausência de determinismo económico, por exemplo, diz respeito: os números habitualmente mais baixos de suicídio no Brasil face aos constatados no Japão ou na Suécia esclareceriam esse indicador.
Assim, como o filósofo Clóvis Barros Filho diz a este propósito também, indagar, socialmente, o que é a vida boa, uma vida alegre(?) é outra das formas de abordar – e à qual não se pode fugir mesmo quando não se discute o problema – este assunto multifactorial.
9. O efeito social-contagioso de um suicídio de uma personalidade influente ou célebre, sobre a qual foi feita uma cobertura noticiosa de tipo sensacionalista, pode bem verificar-se no seguinte caso: nos seis meses seguintes ao suicídio do actor Robin Williams, o método com o qual ele colocou termo à vida aumentou 32%, entre suicidas.
10. A percepção de uma responsabilidade social a assumir neste contexto esteve, certamente, na origem da decisão da rede social Instagram, a mais frequentada pelos nossos adolescentes segundo os estudos disponíveis, de proibir os memes e os desenhos que possam incitar ao suicídio. Desde fevereiro de 2019 que o Instagram proíbe fotografias com auto-lesões. E atente-se: durante 3 meses, o Instagram atuou sobre mais do que 830 mil conteúdos deste género.
11. Uma psiquiatra, no já referido programa radiofónico La Ventana, da Cadena Ser, explica que podemos tomar 5 factores de risco relativamente ao suicídio: i) a enfermidade mental (depressão, psicose, consumo de substâncias tóxicas); ii) a pessoa ter levado a cabo, já, uma tentativa de suicídio; iii) a pessoa possuir uma dor física crónica; iv) a pessoa passar por uma crise vital (acontecimentos vitais que suponham uma grave crise para o sujeito; rotura amorosa, familiar, problemas laborais ou financeiros); v) o isolamento social, ausência de vínculos com os seus semelhantes.
12. Colocar barreiras físicas no aceso a locais onde ocorreram, frequentemente, suicídios revelou-se significativo em algumas zonas do planeta: não, a pessoa não pensou que se não era no sítio A que colocava termo à existência na Terra, seria no sítio B: a partir do momento em que não é consumado esse desenlace, parece que é como se houvesse uma mudança de agulha cerebral naquele momento (pelo menos).
13. Entre 2010 e 2016, as taxas globais de suicídio baixaram quase 10%, em função de campanhas de prevenção bem-sucedidas. Sem a exposição a pesticidas, muitas regiões do globo podem, aliás, ver diminuídas as taxas de suicídio. A Guiana, país, antiga colónia britânica, entre Venezuela e Suriname, com as mais elevadas taxas suicidas, poderá, justamente, beneficiar dessa redução da exposição a pesticidas. A região do Mediterrâneo Oriental é a que apresenta menores taxas de suicídio.