É bom que todos os democratas percebam que vivemos tempos muito perigosos para as ideias da liberdade. Por ter sido complacente, a democracia ocidental está a deixar-se apertar pela tenaz dos extremos políticos. Os moderados, ao centro, estão a ser esmagados.
De um lado temos a extrema-esquerda desconstrutivista, gente que acredita que a causa primeira da desigualdade e da opressão é a aceitação das normas que regem a sociedade. Para libertar os homens dos grilhões, dizem eles, é preciso quebrar as “construções sociais”. Esta perspetiva, consubstanciada na transformação de grupos altamente politizados em minorias com direitos, explica os ajustes de contas com a história, a biologia e a ciência – a que, de resto, estamos a assistir. Todas essas disciplinas são “construções sociais” que perpetuam a relação de desigualdade entre opressor e oprimido. Quase sempre, o ajuste de contas com a história ou com a biologia é feito em nome de “direitos humanos”. Alerto para a patranha: é em nome das liberdades que se cometem os maiores atentados contra ela, como censurar livros, filmes, discurso ou estátuas – tudo decorrências da agenda dos “direitos humanos”.
A extrema-esquerda não gosta da democracia. E tudo fará para a derrubar.
Do outro lado temos a extrema-direita, gente que acredita que há futuro no projeto do medo e da intolerância e na destruição das instituições republicanas. Com os olhos postos em identidades mitológicas, propõem-se restabelecer a pureza comunitária e um sistema de lei e ordem que diaboliza os políticos, a justiça, o comércio livre, a imigração e a globalização.
O discurso apela ao primarismo do ser humano. O “projeto do medo” encontra pobreza na diversidade, desespero na igualdade e revolta na fraternidade. Em cada outro há um estranho, não um igual.
A extrema-direita, tal como a extrema-esquerda, também odeia a democracia, a ordem liberal e tudo o que ela representa. Por todo o lado promete prosperidade, por todos os tempos entregou servidão.
A ascensão dos extremismos, de direita e de esquerda, tem diversas causas comuns na sociedade ocidental.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que vivemos na era dourada da ignorância. O lamentável episódio de vandalismo e pichagem da estátua do Padre António Vieira – um dos grandes intelectuais portugueses e, como prova a carta a D. João vi, um humanista no seu tempo – é apenas um sinal de uma ignorância perigosa. De uma ignorância vaidosa. Não saber é poder.
Houve um tempo, não muito longínquo, em que as fontes primordiais de sabedoria, conhecimento e informação eram os livros, as revistas e os jornais, entidades respeitáveis e escrutináveis que, todavia, perdem a competição pela atenção do “Homo instagramus”.
Para ler, para aprender e para refletir é preciso tempo. Mas o tempo é o recurso mais escasso no mundo hiperligado do séc. xxi.
E numa cultura de glorificação instantânea, de autocomprazimento, as redes sociais – essa lixeira a céu aberto de factos alternativos, mentiras e teorias conspirativas – prometem um atalho para o brilho quando, na verdade, nos mergulham no longo caminho da escuridão.
Em segundo lugar, a falta de crenças nas gerações apelidadas de “nem-nem”. Os nossos avós combateram na Grande Guerra. Os nossos pais libertaram a Europa do jugo nazi e comunista. Nós fizemos Abril e conquistámos a pertença europeia. E as gerações dos nossos filhos e netos: quais são as suas causas? O que as move? Que ideia transcendente, maior do que o indivíduo, as mobiliza?
Ergueram-se, com Greta Thunberg, pelo combate às alterações climáticas. Mas foram tão efémeros como os hashtags.
É um paradoxo, mas as gerações mais preparadas e mais escolarizadas que a Europa já teve são as que menos se incomodam com a perspetiva de viver noutro regime que não seja um democrático. (Yasha Mounck, no famoso artigo que alerta para os riscos da desconsolidação democrática, explica porquê).
Em terceiro lugar, e esta é uma causa bem portuguesa, os partidos do centro perderam por completo a noção de que a democracia é feita, também, de confronto e conflito de ideias. O compromisso é necessário, mais ainda num tempo como o que vivemos. Mas o compromisso não deve, nunca, asfixiar a expetável confrontação de perspetivas. Com um PSD tão próximo dos socialistas que é difícil distinguir as setas do punho fechado, com um PS tão obstinado em controlar todas as dimensões do Estado, foi aberto o espaço para a emergência dos extremos à esquerda e à direita.
Sempre intuí que a solução política de António Costa na legislatura anterior era perniciosa e um dos maiores danos autoinfligidos à nossa democracia. E porquê? Por integrar na órbita do Governo forças protototalitárias e por legitimar as causas revolucionárias. Como consequência natural – basta conhecer as leis da física –, o populismo e o reacionarismo teriam de vir à superfície. Mas neste país onde agradar ao poder é uma obsessão não faltou quem elogiasse a frente de esquerda como o maior neutralizador de populismos na Europa.
O resultado está à vista. E vai ser agravado se o PS continuar a acreditar que dando umas abébias à extrema-esquerda pode aprovar o Orçamento. Travar esta degradação democrática depende da coragem do PS e da vontade do PSD de regressar à política. Regressar garantindo aos portugueses e ao PS que se abstém na votação do OE – voto de viabilização – ao mesmo tempo que é aguerrido no escrutínio ao Governo e implacável no combate aos extremismos de esquerda e de direita – o que implica, de certa maneira, ser duro perante a moleza complacente do Executivo.
Há racismo em Portugal. É um facto. E não é menos facto que a luta contra o racismo une mais do que divide a sociedade portuguesa. A divisão, a politização, o radicalismo só servem uma causa. E essa não é certamente a dos defensores da igualdade. É a causa dos extremos políticos.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira