Deixem os Discos Girar #11. Transgression Global dos Pop Dell Arte

Deixem os Discos Girar #11. Transgression Global dos Pop Dell Arte


Não há barreiras que não possam ser transgredidas pelos Pop Dell Arte e é precisamente esse mote que adotam neste novo disco.


Dez anos depois do último disco, os Pop Dell Arte estão de regresso com um ousado álbum, o mais longo da sua carreira, onde não tem medo de transgredir barreiras. Seja da línguagem, com a utilização de várias línguas mortas, como o latim ou o grego clássico, mas também de tempos, com referências a música barroca ou ao post-punk.

A banda liderada pelo João Peste sempre esteve na vanguarda da música portuguesa e, neste novo registo, continuam a exibir rasgos de genialidade.

1. Em Creta  

Inspirado no poema de Sophia de Mello Breyner Andresen Ressurgiremos em Creta, é o tema de abertura do álbum. A Cristina Abranches Guerreiro traduziu a letra de português para grego clássico, e usámos as duas línguas. 

2. A New Identity

Imaginámos um mercado de transacção de identidades. Isto, num mundo, paradoxalmente, marcado por lutas e afirmações identitárias e, ao mesmo tempo, cada vez mais descaracterizado e homogéneo devido à maneira como o processo de globalização tem sido imposto. 

3. Style Is The Answer (To Almost Everything)   

Uma incursão pelo mundo da moda. Sinceramente, não sei bem o que dizer sobre este tema, pois não sei onde acabam o deslumbramento e o fascínio e começa a ironia. Mas num tempo de relativa estagnação cultural, não deixa de ser interessante que a moda seja uma das áreas criativas mais transgressivas, até porque a redefinição do conceito de género (para a qual os livros da Judith Butler foram tão importantes) obrigou a mudanças profundas na maneira de fazer moda. Palomo Spain ou Vivienne Westwood, referidos no tema, são exemplo dessas mudanças. 

4. 3 Things About Arvo Pärt You Must Remember   

Uma homenagem ao compositor estoniano Arvo Pärt, que é a primeira colagem de um grupo de três colagens todas começadas por 3 things about.

5. The King Of Europe   

Uma personagem marcada por tudo aquilo de que a Europa não precisa, mas que tem em excesso: autoritarismo, populismo, tecnocratismo, xenofobia, anti-semitismo e uma crença cega na “lei do mais forte”, mesmo que disfarçada sob uma capa de falso liberalismo.  

 6. Psycho-Urban-Jungle-Rock 

Uma banda, chamada The Global TV Happy Cats, que costumava tocar na Transgression Avenue e criou um som completamente novo: o Psycho-Urban-Jungle-Rock. Aproveitámos para homenagear nomes como o velho Elvis, mas também o Max Roach, o Mick Ronson e o Mick Harvey dos Bad Seeds.  
 
7. Panoptical Architecture For Empty Streets In A Silent City  

O silêncio, cheio de ruído, do mundo panóptico em que vivemos, onde os dispositivos de vigilância não são de todo poéticos. A sociedade de controlo de que Gilles Deleuze falava e antecipada por Jeremy Bentham e Michel Foucault.

8. 3 Things About Michel Foucault You Must Love  

A segunda colagem do grupo de três já referido. Neste caso, uma homenagem ao pensador Michel Foucault, teórico da transgressão e autor do conceito de heterotopia. 

9. Post-Romantic Lover    

Começou por ser uma brincadeira com o tema de disco sound, de 1978, Automatic Lover, de Dee D. Jackson, e acabou como uma homenagem aos novos caminhos do romantismo (ou do que resta dele) no século XXI, nos quais o poeta Ovídio se mantém afinal tão actual. 

10. Freaky Dance  

Uma viagem pelo imaginário do rock (de Jim Morrisson a Ian Curtis, passando por Marc Bolan, Johnny Rotten e Bob Marley, entre outros). Uma Referência a tempos idos em que o rock era algo transgressivo.

11.Apollo 

Um hino a Apolo, deus grego e romano da música e da poesia. Este tema pode até parecer contradizer o lado mais dionisíaco dos Pop Dell’Arte, mas há que ter em conta que o apolíneo e o dionisíaco quase sempre se complementam.

12. 3 Things About Orpheus You Must Understand      

A terceira e última colagem do disco. Uma referência a Orfeu, músico e poeta, da mitologia, que comovia árvores, rios e montanhas com a sua música, a qual estava para lá de tudo o que era possível e imaginável. Este devia ser o objectivo de todos os músicos: o impossível e o inimaginável.  
 
13. Drinking Wine in The Aventine

Num botequim do Aventino, na Roma Antiga, um antigo soldado combate com vinho a angústia do seu presente, sentindo que nada nem ninguém pode dar um sentido à sua vida. 

14. Mellitos Oculos Tuos, Iuuenti (poema 48 de Catulo)   

Um dos poemas de índole homoerótica, de Gaio Valério Catulo, dedicado ao jovem Iuventus. Nascido em Verona, no século I aC, Catulo pertencia a um grupo de poetas transgressivos que ficou conhecido como os neotéricos (devido a um comentário irónico do conservadoríssimo Cícero) e revolucionou a poesia, em latim, do seu tempo.

15. Eγὼ δ’ ἔσοπτρον εἴην (poema anacreôntico) *    

* Egô Desóptron Eien (nome transliterado do grego clássico)
Um poema, não de Anacreonte, poeta grego do século VI aC, mas um poema anacreôntico, isto é, um poema escrito à maneira de Anacreonte, como são catalogados os poemas de autor desconhecido, escritos em grego clássico, nos séculos seguintes à sua morte, onde a sua influência é inegável.  

16. Hermafrodito Não Nasceu Hermafrodita

Uma incursão pelo mito de Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, que, ao banhar-se num lago da Cária, foi atacado pela ninfa Sálmacis que não resistiu à sua imberbe beleza. Perante a resistência do rapaz, a ninfa pede aos deuses que os unam num só corpo, o que acaba por acontecer. Esperemos agora que os tacanhos conservadores do costume não descubram que afinal a alegada “ideologia de género”, que tanto os preocupa, tem a sua origem na mitologia da Grécia Antiga.

17. Cá Nesta Babilónia    

Talvez o poema mais político de Camões, onde se criticam claramente os poderes e o status quo da sua época, o que poderá permitir que se pergunte: até que ponto Camões é ou não um um poeta transgressivo?

18. Sem Nome  

Talvez um manifesto sobre o direito a não ter nome. Nem nome. Nem identidade. Nem género, pátria ou lei.    

19. Anominous    

Um tema composto em 2014/2015 durante o período da Troika e do governo neoliberal liderado por Passos Coelho e Paulo Portas. Uma tentativa, na altura, de restaurar a ideia de canção de intervenção, dos anos 1960 e 70, embora com um discurso actual. 

20. El Derecho De Vivir En Paz

Uma versão do clássico de Victor Jara, El Derecho De Vivir En Paz, num mundo que continua marcado pela Guerra e onde o drama dos refugiados, que chegam diariamente ao mediterrâneo, denuncia não só a hipocrisia de algumas democracias actuais como expõe a ignorância dos que dizem defender a civilização ocidental e não percebem que a hospitalidade é um dos seus valores mais antigos e estruturantes, presente nos poemas homéricos, em Ésquilo, em Vergílio ou em inúmeros autores do Cristianismo Antigo.  

21. In Different Times (At The Same Time)  

A ideia de um espaço onde os tempos se comprimem num só, onde Vénus faz amor com Marte ao som dos Sonic Youth, enquanto Trimalquião vai contando o tempo que passa e Gilgamesh, nos braços de Enkidu, sonha com a imortalidade. 

22. Minotaur meets Picasso in Lisbon in 2084  

O álbum termina no futuro, com um encontro entre Picasso e o Minotauro, em Lisboa, em 2084. De certa forma, através da figura do Minotauro, regressa-se (sem sair de Lisboa) a Creta e ao tema inicial do disco, fechando e, ao mesmo tempo, reiniciando um ciclo.