Lixboa, Santa Apolónia. Mesa de esplanada de café, garrafa de água das pedras (salgadas?), miséria a circundar. É neste lugar pouco apropriado ao trabalho de composição de uma epopeia, entre ruídos de comboios, que o Camões de As Naus (1988), de A. Lobo Antunes, destrona o vazio e começa a primeira oitava heróica do seu poema. As ferramentas de trabalho usadas – um bloco de facturas e uma comum esferográfica, ambos emprestados pelo empregado de mesa, dizem bem da capacidade de desassossegar imagens cristalizadas. A expressão fisionómica que acompanha a escrita – “ponta da língua de fora, e sobrancelhas unidas de esforço”, a recordar um miúdo de escola a quem faltasse, não o empenho, mas o engenho – afasta a marca da genialidade que a Camões se reconhece, bem como a ideia de que as grandes criações são fruto de anos silenciosos de preparação. Não tentará “o homem de nome Luís” ler a ninguém o poema. O desinteresse pelo seu trabalho expressa-se na indiferença do empregado, mais interessado em reaver o material emprestado: “suspendeu-se à sua frente equilibrando na palma uma bandeja de capilés e perguntou-me do cimo das condecorações de gordura do casaco, sem sequer uma mirada de interesse ao meu poema, Essa esferográfica por acaso não é minha?”. A decepção é comunicada como misto de agastamento e irritação: “danado por me estragarem a epopeia”. Numa cadeira próxima repousa o pai, morto (o velho império colonial), “trambolho” que carrega pelas ruas de Lisboa, primeiro às costas, depois, já cansado, debaixo do braço: “mas onde catano sepultar o pai se não há dinheiro sequer para o serviço dos mortos?”
Em cada regresso que a literatura portuguesa lhe proporcionou nunca a vida lhe corre afortunada. Em “Camões” (1825), o poema narrativo que começou a consagrar Garrett, o vate regressa a Portugal para suprir a ausência do próprio país. O poema preenchia assim “através da sua existência, como Livro, a ausência da Pátria, como Nação”. Num incómodo exercício que decorre entre o texto e as notas que se multiplicam até à 4.ª edição, o leitor vai seguindo os fios da história de um “divino cantor” que volta, pobre e mutilado, para morrer de miséria. Logo a abrir, vamos surpreender o herói, ainda incógnito, prostrado no leito de morte, no exacto momento em que abre os olhos “que atónitos duvidam/ Se inda é mundo o que vêem”. A pouca claridade que incide sobre a “pobre cama” é insuficiente para obstar à morte de tão “exausta lâmpada”. Saberemos, depois, que o Camões regressado se encaminha, logo à chegada a Lisboa, para uma morada de treva. Só e intérprete privilegiado de um destino amargo, tem como tesouro único um livro que o rei D. Sebastião ouve mas não transforma em obra. Camões vive assim – numa falaciosa epopeia – um drama agudo: a impossibilidade de regressar a uma pátria que lhe nega morada.
Impossível de fazer sobreviver e impossível de matar, este Camões desterrado e errante, perseguido pelo infortúnio e incompreendido pelos contemporâneos, haveria de regressar por ocasião das comemorações do terceiro centenário da morte do épico, em 1880, a um poema de Gomes Leal, “A Fome de Camões” (1880), para morrer de novo – de fome, literalmente de fome, num leito miserável de hospital, amortalhado num lençol conseguido através de esmolas. Poema épico-alegórico, é ditado pela “musa da Revolta”, que põe em evidência a fome alegórica da Pátria de que Camões é o símbolo. No tom carregadamente sombrio que se ajustava ao estado da Pátria decadente, compunha com detalhes sinistros o autor de Claridades do Sul a mais lúgubre antiepopeia do século XIX.
O próprio Camões, que n' “Os Lusíadas” surge já de “voz enrouquecida”, cansado, não do canto mas de quem canta, dera já o seu contributo no registo da decadência de uma nação que se despenhara das alturas do ideal para aterrar na baixeza cívica. Dela nos falariam as trovas conhecidas pelo sugestivo nome de “Disparates da Índia”, espécie de canto satírico do desapontamento e da deceção. O autor das Rimas, à altura na Índia, sufocado por uma atmosfera onde transparecia a ilusão das riquezas inesgotáveis, expõe ao ridículo a presença portuguesa no Oriente num quadro de vaidade em ridícula exibição. Contra a corrupção, o luxo, o pretensiosismo, a mania nobiliárquica, desfere ali duros golpes, não amenizados pela ironia e pela tonalidade satírica que percorrem o discurso destas trovas com endereço, à altura facilmente identificável.
Sobre a desumanizada “pátria onde Camões morreu de fome / e onde todos enchem a barriga de Camões” haveria de investir Almada Negreiros com agressividade paródica nas estrofes dessa extensa e admirável peça vanguardista que é a Cena do Ódio (1923). Ao discurso laudatório de Os Lusíadas opõe Almada um discurso rizomaticamente antiépico onde não há lugar para formas canonizadas, “Os Lusíadas” incluídos. O poema camoniano – tratado com rara violência verbal – é alvo de críticas ferozes que destroem, por inversão, o valor épico dos feitos dos Portugueses. Por outro lado, as Descobertas, a expansão ultramarina e as invenções decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico não tiveram, para o autor do Manifesto Anti-Dantas, outros resultados que não o da globalização da “chatice” e da multiplicação desse parasita público que é o “chato”.
O poemeto de 1931, “Luís, o poeta, salva a nado o poema”, do mesmo Almada , oferece-nos um Camões sem auréola nem aura épica, reduzido ao nome próprio, transformado num português comum, digno representante de um Portugal de carne e osso. Perdida a sua qualidade de Imortal, o grande poeta, agora alijado da carga mítica acumulada ao longo dos séculos, ficava assim apto a protagonizar momentos humanos de trivialidade doméstica.
O abaixamento da Pátria, dos heróis ligados à época áurea da nossa história e de Camões, que os cantou, alvos sempre apetecíveis aos procedimentos menorizantes da antiepopeia, conheceu, ao longo do séc. XX, importantes capítulos. De assinalar o que foi escrito, com tintas de vigor provocatório, pelos surrealistas portugueses, ativos demolidores de símbolos, mitos e ideologias normativas. Apostados na desmistificação de um certo Portugal, sem correspondência no quadro acanhado e pardacento da realidade dos anos 50 e 60, investem sobre reis, conquistadores e navegadores, edificadores do velho reino e sobre todos aqueles que, de algum modo, praticaram “obras valerosas”. Assim, a Pátria heróica volve-se no “país do eufemismo”, no “Reino de Pacheco” (Alexandre O’Neill), no “pátrio mijo” (Pedro Oom), no “torrão florido mesmo à beira-mar plantado” (António Maria Lisboa), “numa coisa sem solução” (Mário Cesariny). O esplendor de Portugal reverte em “Hino Triste Sem Melodia” (Fernando Lemos). Os lances heróicos de excecional valor dão lugar aos dias regulares, rasteiros e burocráticos, feitos de insatisfação e de tristeza resignada, como expressa o poema justamente célebre “Um Adeus Português”, de O’Neill. À ditadura da memória, alimento substancial da epopeia, sobrepunha o surrealismo o desejo de inovação e de ruptura, apontado assim no sentido de uma épica perdida.
Em “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos” (1953), propõe Mário de Cesariny uma viagem de pequena dimensão que parece obedecer a um traçado que nos confronta com a rota das caravelas das descobertas e, concretamente, com a viagem inaugural do Gama à Índia, símbolo maior da aventura portuguesa nos mares: a da vida quotidiana do “funcionário cansado” de que fala António Ramos Rosa, que atravessa o rio no cacilheiro do Barreiro a Lisboa para mergulhar na mesmice dos trabalhos e das horas e nele regressar à rotina cinzenta que é a sua vida. No “proletário dos mares”, onde não bate sombra da mítica glória das caravelas ou mesmo da modernidade dos vapores de Álvaro de Campos, viaja gente miserável. Incapaz de dobrar a pequenez, compõe, dia após dia, essa (anti)epopeia do real e vil quotidiano.
O país das naus conheceria outros golpes, nenhum tão forte como o que foi dado por António Franco Alexandre na fortíssima imagem de um “Sodré sem Cais”, o país como lugar desatado, despegado da sua própria história. Daqui à amnésia é um passo curto.