Ufa, afinal é tudo uma questão de vitamina D


A grande preocupação de muitos não se prende com os afetos, a economia, a política, a saúde, a justiça ou a educação, mas com a praia. 


Os últimos dias foram de grande alívio para mim, quase de felicidade, e quero partilhar isso com os leitores (admitindo que os tenho, claro, e entre família e amigos pelo menos alguns se arranjarão). Antes houve dois meses difíceis, angustiantes, de preocupação, et cetera, para mim e para todos, e para muitos seguramente bem mais do que para mim – que a vida custa a todos, mas não custa, evidentemente, da mesma forma. E quando as coisas começaram a aliviar um pouco, eu não fiquei muito menos angustiado nem preocupado. Só um bocadinho, mas devo dizer, mea culpa, que maio, que já leva mais de metade cumprida, não foi um mar de descontração. Nada disso. Muito tenho remoído sobre a morte, a doença, a pobreza, a solidão, a angústia, a velhice – coisas que sempre aí estão, mas que esta situação que temos vivido veio exacerbar. E, olhando para diante, angustiava-me a incerteza sobre o que vai acontecer, para onde vamos, como vamos. Quantos perderão emprego, quantos adoecerão, o que mudará nas nossas vidas, que caminhos tudo isto abre para sombras e perigos que já se anunciavam? Et cetera. E em coisas mais comezinhas, mas não menos importantes, antes pelo contrário, andava eu preocupado em saber quando podem os filhos e os netos abraçar os pais e os avós, e vice-versa. E quando podemos nós, como diria um grande amigo, agarrar a mão dos nossos mortos no momento em que se vão. E também muito me tem tirado o sossego saber se é preciso cortar aqui ou ali e em quem e como, e quanto, e se há emprego, se há economia, se há meios de subsistência, e que futuro há e como será. E nem falo de mim mesmo, do que me tem faltado e falta, dos meus e das pontes e caminhos da vida subitamente cortados ou colocados em suspenso.

Nada disso importa muito, realmente, e nos últimos tempos tenho aprendido que me preocupo em demasia. Nunca é tarde para aprender, de facto. Pelo que tenho visto, ouvido e lido, a grande preocupação de muitos dos meus concidadãos não se prende com os afetos, a economia, a política, a saúde, a justiça ou a educação. A grande preocupação, o alfa e o ómega, o norte e o sul, a grande medida da interrogação prende-se com a praia. Deus meus, a praia! Em que condições poderemos ir à praia? Já há regras para a praia? Tem semáforos? Tem polícias? Tem pré-marcação? E numerus clausus? E a quantos metros cada um tem de estar do outro? Chapéu-de-sol, pode-se levar? E a água, será perigosa? Posso mergulhar? E bolas-de-berlim, pode ser? Bronzeador, tem de ter álcool? Não podemos mesmo jogar à bola? E como estamos de esplanadas? Ai, aquele pôr-do-sol sem uma esplanada não é a mesma coisa.

A praia, pois é. Como é que não me ocorreu a praia, no meio das minhas preocupações? Óbvio, questão fulcral, determinante, essencial. A verdadeira salvação pós-covid. Devo mesmo estar com falta de vitamina D. Só pode ser. Ora, o emprego, os lares, os velhos, os afetos, a saúde, a solidão, o Estado e a cidadania. Blá-blá-blá. Tretas, só metafísica, muita metafísica, coisas de gente complicada, como pensaria o Esteves, o de “Tabacaria”. A praia é que é. Desde que o descobri, estou muito aliviado. E grato. Já respirei fundo, já preparei tudo, anseio agora por saber quais serão as regras definitivas para poder pôr-me a caminho da praia, a nova Jerusalém. E, antes cedo que tarde, venha lá o raiozinho de sol. Caramba, já é tempo, é quase junho.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira