Para o bem e para o mal, vivemos tempos excecionais. Dois mil e vinte ficará para a história da integração europeia como o ano do nascimento das eurobonds. Ainda que a tenham batizado com outo nome, é exatamente da emissão de dívida conjunta pelos 27 que trata o novo fundo de 500 mil milhões de euros proposto por Angela Merkel e Emmanuel Macron. Quinhentos mil milhões de euros em eurobonds.
O plano de reconstrução económica da Europa avançado pelo eixo franco-alemão é o New Deal da nossa geração.
Tem poder financeiro para criar uma Europa mais próspera, que cicatrize as feridas deixadas abertas pela pandemia.
Tem princípios de solidariedade, materializados na ideia de que as transferências são feitas para os Estados sem necessidade de reembolso. Dito de outro modo, é Bruxelas que se financia pelos 27, cabendo aos orçamentos europeus libertar as verbas que os países recebem a fundo perdido.
Tem ethos e reforça o apelo da Europa como projeto político democrático de que vale mesmo a pena fazer parte.
Este fundo, a que todos os membros do clube europeu podem recorrer, estará especialmente focado em projetos de saúde pública, transição ecológica e digital e investimento na soberania industrial – todos áreas do edifício europeu onde grandes fissuras foram expostas pela crise pandémica.
Uma Europa que se orgulha do seu Estado social, que eleva a fasquia dos direitos sociais e humanos, não pode assistir, impotente, ao desabar de sistemas de saúde nacionais nem à emergência dos nacionalismos.
Uma Europa que tem a ambição de ser líder no palco mundial não pode ser um anão tecnológico que caminha atrás dos gigantes americano e chinês.
Uma Europa que se afirma pelos valores de solidariedade e democracia não pode deixar que seja cada Estado por si. E muito menos permitir que à sombra da pandemia floresçam nas nossas sociedades as ambições estratégicas de países terceiros que têm como objetivo moldar os nossos valores e o nosso modo de vida à sua imagem.
Merkel e Macron leram bem as dificuldades estratégicas, políticas e económicas no horizonte. Compreenderam que esta era a hora decisiva para o projeto europeu.
“Situações extraordinárias pedem medidas extraordinárias”, disse Merkel, a grande líder europeia dos últimos 20 anos. O plano de reconstrução da Europa marca uma mudança notável de Merkel, uma opositora de muitos anos das eurobonds, num contexto interno difícil em que o Tribunal Constitucional Alemão se opôs com estrondo ao programa de compra de dívida pública do BCE – a agressiva politica monetária que tem permitido a sobrevivência da zona euro e que, só em 2020, engordará o stock de dívida com 900 mil milhões de euros adicionais em compras de títulos.
Merkel, que já não vai a votos, percebeu claramente que se houve um momento em que o projeto europeu podia colapsar, esse momento era agora. Com audácia, coragem e europeísmo genuíno, abdicou da sua (prudente) posição de sempre em nome de um bem maior: a sobrevivência da Europa como a conhecemos. Podia ter ido pelo caminho politicamente mais fácil: nacionalizar a política europeia. Preferiu o combate maior e mais justo: europeizar o debate alemão.
Mesmo com o agrément do eixo Paris-Berlim, é certa a oposição do bloco da ortodoxia fiscal: Áustria, Holanda, Dinamarca e Finlândia. A partir daqui assistiremos a uma tremenda luta política entre os estados do Sul (Portugal, Itália, França e Grécia) mais a Alemanha, que propõem as eurobonds, e os países e opiniões públicas para quem é absolutamente incompreensível que as transferências de dinheiro se façam sem ser na forma de empréstimos que têm de ser pagos.
Com a extraordinária mudança de alinhamento da Alemanha, o Sul ganha vantagem nesta contenda, que ainda passará por um tortuoso processo de aprovação.
A solução europeia, proposta por Merkel e Macron, vinga o posicionamento político português e a estratégia de António Costa. O Governo esteve do lado certo da História.
Contudo, esta é a solução que exigirá mais de António Costa e do Governo PS. Com tanto dinheiro a cair do helicóptero europeu, não há espaço para desculpas com a conjuntura. As crises sociais e económicas terão de ser aplacadas logo no seu início, com boas respostas políticas e com uma gestão muito criteriosa dos recursos por parte do Governo.
Ao contrário do que aconteceu em 2011 com a bancarrota socialista, quando, em troca de financiamento, a Europa prescreveu um programa de ajustamento duríssimo a Portugal, desta vez, António Costa não terá de governar nem com medidas de austeridade impostas por Bruxelas, nem com memorandos, nem com a troika.
Ao contrário do que aconteceu no passado recente, o primeiro-ministro português não só tem todas as ferramentas europeias ao seu dispor para poupar Portugal e os portugueses à austeridade como tem as condições para promover uma rápida recuperação da economia e do emprego. Se o plano de Merkel e Macron for para a frente, e faço votos que vá mesmo, os portugueses não lhe exigirão nada menos do que isso.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira