As Memórias e a memória de Diogo Freitas do Amaral

As Memórias e a memória de Diogo Freitas do Amaral


1.Em uma das conversas derradeiras com Mário Soares, Diogo Freitas do Amaral confidencia, não sem amargura, que não possui partido, nem dinheiro para criar uma Fundação que lute pelos ideais sociais de uma Democracia Cristã.


2.No terceiro (e último) volume da sua auto-biografia (Mais 35 anos de Democracia. Um percurso singular, Bertrand, 2019), Freitas do Amaral assume uma mudança ou evolução do seu pensamento (ou, talvez melhor, a mudança de referências partidárias para se manter fiel ao seu pensamento), evolução essa muito marcada quer pela experiência na Assembleia-Geral das Nações Unidas – de onde possuiu um palco privilegiado para olhar a vida política norte-americana e a crescente radicalização do Partido Republicano, no que à falta de salvaguarda dos direitos sociais diz respeito, ainda durante os anos 90 – quer pelo estádio, em termos nacionais, de partidos com os quais se havia identificado intensamente, em especial desconcertado, no início deste século, com Durão Barroso, como Primeiro-Ministro, vendo este aderir às teses mais liberais, no corte de prestações sociais a quem se encontrava em pior situação na vida.

3.Se olharmos às últimas duas décadas da sua intervenção pública, que pude acompanhar mais de perto, notaremos como Freitas do Amaral nunca seguiu ortodoxias ideológicas: as suas posições sobre temas tão diversos como o aborto – no qual desagradou fortemente à esquerda – e na guerra do Iraque – que o levou a ser atacado sem tréguas à direita – evidenciam, antes, uma fidelidade a um convicto e estruturado pensamento social católico e a uma liberdade que recusa as amarras de quem o pretendeu prender a qualquer estrutura partidária ou ideológica que o leve a transigir com um núcleo essencial de valores nos quais se revê. Um homem livre que não sucumbe a insultos e dichotes (que o visavam condicionar, diminuir ou silenciar). Quando o seguidismo e o clubismo, também no mundo político, são tantas vezes a norma, quando se subscrevem programas políticos, sob a mesma sigla, que podem dizer tudo e o seu contrário (com o intervalo de poucos anos), a reivindicação de uma cabeça que quer pensar por si própria, à luz de uma doutrina clara, é, com certeza, um exemplo cívico inestimável.

4.Um certo dia, falando – como então, segunda metade dos anos 90, ocorria frequentemente -, numa das mais prestigiadas universidades norte-americanas (Berkeley, no caso vertente), Freitas do Amaral, Presidente da Assembleia-Geral da ONU, vê uma jovem, no final da sua oração de sapiência dirigir-se-lhe e afiançar, o que o emociona, que acabara de ficar tão empolgada com as suas palavras que decidira, ali mesmo, dedicar-se às Nações Unidas e, através delas, aos países mais pobres do mundo. Um dos traços mais marcantes de Diogo Freitas do Amaral é, pois, a sua capacidade pedagógica, a fluência da palavra, a articulação entre o rigor e a inteligibilidade do que diz e escreve. Com uma confissão, neste livro (intitulado “Mais 35 anos de democracia. Um percurso singular”): os seus escritos de Ciência e Filosofia Política foram uma forma, por vezes, de sublimar derrotas políticas. De entre os seus escritos, neste contexto, gostaria de destacar “A História do Pensamento Político Ocidental”. Como, com felicidade, escreveu, à época da publicação de tal Tomo, Guilherme d’Oliveira Martins, no Jornal de Letras, uma obra a traduzir, a expandir além-fronteiras, de rara envergadura intelectual e académica e com a incomum qualidade, simultânea, de chegar a um público composto por não iniciados. 

Durante a sua estadia de um ano em Nova Iorque, cidade pela qual passeou as grandes livrarias e bibliotecas, bem como museus e na qual assistiu às melhores óperas com os grandes nomes da música erudita, Freitas nunca se poupou a um enriquecimento de horizontes: "sempre considerei esses gastos [com a cultura] como um investimento, nunca como despesa de consumo supérflua". Como escritor, ousou sair do seu campo de especialidade, inserindo-se no domínio histórico – onde a sua biografia de Afonso Henriques se tornaria muito popular e muito vendida – ou no teatro, expondo-se, é certo, ao registo crítico dos seus pares (de academia e não só) especializados em tais âmbitos.

5.O Professor de Direito Administrativo – que fundou a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa -, introduziu, nos currículos jurídicos a determinante do inglês técnico e convenceu os estudantes a não recorrerem a uma praxe que via como desumanizadora, é muito crítico com a investigação judicial do caso Camarate e elogioso do trabalho realizado na Comissão Parlamentar de Inquérito em especial a 5ª (1993-1995), sugerindo responsáveis pelo trágico desenlace com Sá Carneiro, Amaro da Costa e Snu Abecassis, “o dia mais triste de toda a minha vida”, anota. 
Ele que, por outro lado, distingue um Sócrates que, na sua interpretação, entre 2005 e 2008, teve méritos como a diminuição do défice, a criação do complemento social para idosos ou o enfrentar de corporações, do Sócrates eleitoralista e despesista a partir de 2009, com grandes aumentos aos funcionários quando a inflação era nula, e o caminho muito complicado das contas públicas. Guterres “governou bem, sem sobressaltos” e com “medidas sociais inovadoras” como o Rendimento Mínimo Garantido, e Cavaco, um homem de “autoridade e eficácia”, foi “um dos melhores governantes em democracia”, sustenta, permitindo “a convergência real do país com a UE”, com o senão das privatizações na banca não bem ponderadas e do controlo político da RTP. A Passos Coelho, escreve Freitas do Amaral, faltou sensibilidade social, em medidas muito penalizadores para vastos sectores, os mais frágeis, da sociedade portuguesa.

6.Entre muitas outras funções, Freitas do Amaral presidiu à comissão para a Reforma do Sistema Prisional, no início deste século, era então ministra da Justiça Celeste Cardona. Diga-se a propósito, que, entre 1959 e 1983, não havia sobrelotação das prisões, mas, de 1984 para cá passou a haver. Muito sinteticamente, a comissão presidida por Freitas do Amaral sugeria a) menos tempo de prisão efetiva (e penas menos longas) e b) novos edifícios prisionais (com o tratamento singularizado que a lei previa). Passados 15 anos, a reforma continua por avançar: "alguém se admira que, em 2018, tenha começado a haver greves e distúrbios nas nossas prisões? Como é possível, num país cristão, conhecido pelo seu humanismo natural e espontâneo, haver na classe política tanta falta de sensibilidade para com os que caíram na vida e não têm quem os ajude a levantar-se?", interroga-se e interroga-nos. 

7.Épica é a sua troca de palavras com Madeleine Albright, em plena Assembleia-Geral da ONU, com o mundo árabe e israelita a digladiarem-se uma vez mais e Freitas a ter de ser árbitro: “- Ouça uma coisa: porque é que não faz o que eu lhe digo?”, interroga, autoritária, a diplomata americana. “Eu, já irritado com ela, mas sereno, retorqui de imediato:- Porque eu é que fui eleito presidente da Assembleia Geral, não foi a senhora!”.

8. Sobre as eleições presidenciais de 1986 – para muitos, a última em que o país se envolveu profundamente e se fraturou politicamente ao meio -, Freitas do Amaral entende que há três grandes factores que o levaram a perder: i) o currículo, então muito superior ao seu, de Mário Soares; ii) o contexto político-social de então: depois de décadas de ditadura de direita, o eleitorado naturalmente virou à esquerda. A surpresa, diz Freitas do Amaral, foi ter chegado aos quase 49% dos votos, na segunda volta. Nunca, até então, PSD mais CDS, coligados, haviam tido mais votos que os partidos de esquerda juntos. Ora, e face a um adversário com o peso de Soares, a sua votação foi elevada; iii) o medo, por parte do eleitorado, que a dupla Cavaco-Freitas inclinasse o país muito à direita e tivesse uma propensão autoritária jogou o seu papel. Os Distritos que mais votaram em Freitas do Amaral foram Viseu (67,9%), Bragança (67,7%) e Vila Real (65,3%).

9. Evidentemente, a questão atinente a qualquer auto-biografia, a quaisquer "Memórias" passa, desde logo, por esse material fluido e complexo que a memória é. Pelo relato de acontecimentos que, em diferentes ocasiões, não tem presentes, já, hoje, determinados protagonistas para o contraditório poder ser realizado. Em muitos casos, pela tendência para o auto-elogio. Sendo que, na re-arrumação dos factos, das decisões, episódios históricos, uma narrativa, à distância, permite organizar, com uma coerência existencial, doutrinária e ideológica, aquilo que, muito naturalmente, passou, possivelmente, em algum momento, mais pelo "muito humano" do que pela perfeita sintonia entre o princípio e a acção. Tudo isso atento, creio, em todo o caso, que não podem passar despercebidas, nem deixar de ser estudadas as anotações de um dos chamados pais da nossa democracia, nem, sobretudo, o exemplo, a clarividência, a acutilância, a coragem de quem, numa espécie de linhagem a la Montaigne pode ser visto como padroeiro de livres-pensadores. Culto, interessante, estudioso, metódico, social e politicamente empenhado: Freitas do Amaral, europeísta e cosmopolita, um exemplo de cidadania, uma inspiração para quem observa o mundo, e o pretende discutir, a partir também de uma mundividência cristã. 

“Como centrista, dei primeiro força à direita democrática para enfrentar e atenuar os efeitos de uma tentativa de Revolução comunista; e depois, como centrista, dei força à esquerda democrática para enfrentar os efeitos de um retrocesso neoliberal. Isto foi ser incoerente?!”. A questão retórica fica-nos como uma espécie de síntese e epitáfio político de um percurso que Diogo Freitas do Amaral nunca deixou de tomar a sério e por inteiro.