A arte de roubar a cena, de o fazer de forma intempestiva e gloriosa, comandando uma graça e presença irresistíveis, tem muito que se lhe diga. O humor vive de tangentes, e mesmo quando se parte o prato, quando a baixela sai zunindo pela janela, não é difícil, mesmo assim, a coisa ficar insossa ou exagerar-se no tempero. Fred Willard era um mago da improvisação, um requintado patego, sempre a urdir raios e coriscos, uma tesmpestade de disparates que nos atingiam como um fenómeno tão esquisito e assoberbante como só a natureza sabe congeminar. O talento deste comediante era tudo menos forçado, e foi isso o que fez da sua lenda uma dessas que nos obrigam a colar os cacos, tantos papéis menoríssimos, que fizeram dele esse especialista em intrusões graciosas. O actor que nunca se desembaraçava inteiramente de si mesmo, desse ‘personagem’ reconhecível, um “colosso de excentricidade normal”, como lhe chamou o crítico de televisão Robert Lloyd, morreu na noite de sexta-feira, aos 86 anos.
A filha, Hope Mulbarger, deu a notícia na manhã de sábado, no Twitter, sem avançar a causa da morte. Além da forma pacífica com que o pai se virou para a parede e se apagou, a revelação foi a sua idade, os “fantásticos 86 anos” do actor, que arranjava sempre maneira de se esquivar a essa pergunta, e que era, certamente, mais velho do que a maioria dos seus colegas e amigos supunham. Desde logo pelo aspecto jovial, com aquele maxilar quadrado, sorriso aberto, os ombros largos, o cabelo farto, os olhos vivos, e depois a inspirada galhofa que sempre fazia sair em marcha. “Ele não se ficou, continuando a trabalhar e a fazer-nos felizes até ao derradeiro momento”. E quando lhe expressa o seu amor e gratidão, a filha fala também por todos os que se riram como nos rimos com o tio que, nas cerimónias familiares, fica atrás do padre, numa sabotagem delicada, dissecando a solenidade dessas ocasiões enfadonhas, como quem operasse moscas para as dotar com melodiosas asas de anjo. “Vamos ter saudades dele para sempre”, remata a filha.
A morte de Willard acontece dois anos após a da sua mulher, Mary, uma dramaturga e guionista, que desapareceu aos 71 anos. Na altura, o actor pôs a hipótese de ficar por ali, entregar o resto da vida ao luto, mas os amigos foram-no requisitando, e quando Jimmy Kimmel o chamou para mofarem uma vez mais do Presidente Donald Trump, Willard não se quis fazer rogado. Afinal, era o seu dever patriótico como membro honorário da Força de Intervenção Satírica.
Ao longo de meio século, entre filmes para o grande e pequeno ecrã, e episódios de séries, Fred Willard acumulou mais de 700 créditos, sendo nomeado por quatro vezes para os Emmy, e destacando-se nas comédias de Christopher Guest, as quais, contando com um vasto elenco, ofereciam aos actores uma folga imensa para a improvisação. Willard brilhou nessas aparições em filmes como “Best in Show”, “A Mighty Wind” e “Waiting for Guffman”, mas foi na regularidade das presenças em sitcoms como “Everybody Loves Raymond” ou “Modern Family”, onde, ao longo de 11 temporadas, fez o papel de Frank Dunphy, o pai de Phil, que, mais do que um rosto familiar, se tornou esse oficiante que do fio de baba que nos escorre em momentos de enfado faz um chicote. Assim, o seu desaparecimento é sentido por muitos como uma morte na família. E se Hollywood, nestas horas se encosta à música lamechas, com a procissão de banalidades que vão pingando dessa garrafa de soro que é o Twitter, a portentosa indústria do entretenimento mostra a sua fragilidade quando é preciso um crítico de televisão, essa tão ameaçada espécie, que, mais do que declarações balofas, saiba erguer um monumento de apreciação pelo trabalho de um tão amado tio. É isso o que, nesta ocasião, apenas Robert Lloyd, nas páginas do “Los Angeles Times”, soube fazer. Ele esclarece que Willard não era tanto um criador de personagens dessas secundárias que fazem vibrar o pano de fundo, mas mais um personagem em quem se podia confiar para entregar a cena, inebriado ma non troppo. De alguma forma, “ele nunca escapava a ser outra coisa que não ele próprio”. “E se o que querias era um tipo no género do Fred Willard não tinhas escolha senão ir buscar o Fred Willard”, nota Lloyd. “Ele era o ingrediente secreto, o molho especial”, esse que espevita o travo de qualquer dessas mistelas de ficção sensaboronas que, hoje, fazem da sala de estar uma zona de pasto. “Dar com ele no ecrã”, continua Lloyd, “causava sempre um certo empolgamento, como se nos tivéssemos cruzado com ele na rua. (‘É o Fred Willard!’) E ao observá-lo, davamo-nos conta da consumada arte de um profissional, mas também de um tipo que parecia ter dado por si a invadir acidentalmente um set de filmagens, tendo-lhe sido entregue um guião – ou nem isso –, e ouvindo a ordem ‘Acção’.” Depois, o seu talento insuperável era o de aguentar o ar respeitável desses intrujões que nunca reconhecem que há muito falharam a sua saída, perdendo todo o sentido de orientação. Como notou certa vez a “New Yorker”, a sua arte esta em elevar a charada, com os seus personagens que davam por si “gloriosamente fora de pé”.
Frederick Charles Willard Jr. nasceu em 1933, em Cleveland, e era filho único de um casal de classe média alta, tendo crescido no afluente subúrbio de Shaker Heights. Depois do pai ter morrido, a mãe voltou a casar-se e Fred foi enviado para um colégio militar. Mais tarde formou-se no Virginia Military Institute e serviu no Exército, integrando a equipa de basebol, o que foi a realização de um sonho. Mais tarde disse numa entrevista que sempre quis ser jogador de basebol, mas também confessou que tinha sempre um rádio ligado e a inundar a casa com triunfantes cenas de comédia em que foi aprendendo o seu ritmo com pequenas intromissões. Robert Lloyd nota que, nos seus personagens, algo da disciplina militar transparece, e que antes ou depois de uma estroinice, ele consegue retomar a figura do adulto responsável, mesmo se, “no seu íntimo ele era um parque de diversões e não apenas a montanha-russa ou o carrossel, mas também a casa assombrada e a casa de espelhos”. Quanto mais sério o papel, mais ironia lhe era despejada em cima pelo simples facto de ser Willard a interpretá-lo. De resto, aqueles que com ele trabalhavam, prestavam-lhe a devida homenagem resvalando para a audiência ao rirem-se com as suas beliscadelas à margem do guião. Bob Odenkirk, o actor que deu tamanha vida ao advogado trafulha, hilariante na sua angústia, em “Breaking Bad”, e que conseguiu seguir com os seus ofícios no spin-off de sucesso “Better Call Saul”, prestou um dos poucos testemunhos eloquentes entre a catrefada de celebridades que veio para as redes sociais chorar a perda de Willard. Odenkirk recorda uma cena em que que contracenaram e em que foram obrigados a aguentar múltiplos takes. E o que poderia ter sido uma enfadonha volta num carrossel cuja música se vai tornando cada vez mais irritante, tornou-se uma aventura para o actor que se recorda de que “Fred sacava sempre alguma coisa nova e fresca a cada take e ia sempre subindo a fasquia mas sem o menor esforço. Verdadeiro, humano, com um piadão.”
Acabou por estudar no Showcase Theater em Manhattan e depois seguiu para Chicago, onde se juntou ao grupo de improvisação Second City. Foi aí que conheceu Vic Grecco, com quem Willard formaria uma dupla, actuando em bares e clubes de comédia até conseguirem criar algum bruaá, sendo convidados para aparições televisivas em programas como “The Ed Sullivan Show” e “The Smothers Brothers Comedy Hour”.
Com o passar dos anos, Willard veio a tornar-se um desses tipos a que os apresentadores dos talk-show recorrem quando precisam de alguém que os safe em cima da hora, e, assim, tornou-se um habitué nesses programas, participando comoconvidado em mais de 50 sketches no “The Tonight Show With Jay Leno”. Também era convidado frequente de David Letterman e, nos últimos tempos de Jimmy Kimmel. Caía de pára-quedas e não demorava a recompor-se, para uma vez mais se lançar na exposição de alguma teoria mirabolante, mas sempre confiante, um truão, um refinado impostor, alguém que, como diz Lloyd, mesmo quando tudo promete que estamos prestes a despistar-nos e capotar num acidente aparatoso, mesmo então, transmite-nos a sensação de que as coisas vão ficar bem. E é por isso que esta é uma altura particularmente má para se perder um homem que fazia isto por nós.