Fátima. A Peregrinação (agora cerceada)

Fátima. A Peregrinação (agora cerceada)


O centenário das “aparições” foi ocasião, assim, para um renovado apelo à devida reconsideração do que sucedera, em Fátima, em 1917. Dos diferentes estudos dados, então, à estampa, um daqueles que ficará como um marco, uma referência de seriedade, rigor e honestidade intelectual, complexidade na abordagem ao tema, é o trabalho desenvolvido pelos jornalistas António Marujo…


O mês de Maio português costuma confinar, marcadamente, com Fátima. Dada a sua importância, desde logo sociológica, mal se compreendia a não inserção de investigadores, de diferentes áreas do conhecimento e vinculações/filiações filosóficas e/ou mundividências diversas – como alguns reclamavam que não sucedia cabalmente, porventura, alvitravam, em virtude de um preconceito para com o religioso, e pese, em todo o caso, a já extensa publicação, entre muitas outras, da “Documentação Crítica de Fátima” e da Edição Crítica das “Memórias” de Lúcia de Jesus, com contributos de pesquisadores oriundos de universos disciplinares múltiplos –, na procura da interpretação de um dos mais marcantes fenómenos do nosso século XX: as chamadas “aparições de Fátima” (e todo o conjunto de consequências – sociais, políticas, religiosas, económicas – que destas advieram). O centenário das “aparições” (ou “visões interiores” dos pastorinhos) foi ocasião, assim, para um renovado apelo à devida reconsideração do que sucedera, em Fátima, em 1917. Dos diferentes estudos dados, então, à estampa, um daqueles que gostaria, hoje, de recordar e destacar e que, muito provavelmente, ficará como um marco, uma referência de seriedade, rigor e honestidade intelectual, complexidade na abordagem ao tema, seria o trabalho desenvolvido pelos jornalistas António Marujo e Rui Paulo da Cruz, (um) crente e (outro) não crente, (respectivamente), colocando em perspectiva as mais diversas aproximações ao tema – histórica, antropológica, sociológica, literária, teológica –, e entrevistando estudiosos que se abeiram da questão situados em campos completamente opostos nesta matéria (o livro chama-se A senhora de Maio. Todas as respostas sobre Fátima, Temas e Debates, 2017).

Mas vem isto a propósito do que Fátima nos revela acerca do actual estado da arte no que ao âmbito das peregrinações diz respeito. Um dos dados que diferentes investigadores sublinham, naquela obra, reportando-se a Fátima, mas não só, tem que ver com a revalorização que as peregrinações estão a ter, no nosso tempo, sendo que a leitura acerca do novo peregrino nos permite, igualmente, um olhar de relance sobre as sociedades em que vivemos. “A peregrinação é um fenómeno vivo e, claramente, tem havido uma transformação que tem a ver com a peregrinação em si mesma, o que se verifica em Fátima, mas também em Santiago de Compostela”, observa Carlos Cabecinhas, Reitor do Santuário de Fátima. Peregrinar voltou, pois, a ser uma actividade digna e entendida/legitimada, socialmente, como tal, o que levou, nestes últimos anos, a uma transformação do tipo de pessoas que vão a pé a Fátima: “tínhamos uma população rural que vinha a pé por promessa. Agora, cada vez mais gente vem do ambiente urbano, com formação académica superior, não porque se tenha feito uma promessa, mas porque se pretende fazer a experiência do peregrinar a pé”, complementa Carlos Cabecinhas. Todavia, na sua esmagadora maioria, os peregrinos de Fátima não vão a pé. A promessa mantém-se, embora se vá transformando também. A peregrinação a pé deixa de ser vista, exclusivamente, pelo prisma do sacrifício e começa a ser tomada como uma experiência de ‘tipo místico’ que se pode realizar através de um exercício físico. Isso traduz a percepção de algo que sempre esteve presente em toda a vida cristã embora em alguns momentos tenha caído um pouco no esquecimento: “a vivência cristã é profundamente arreigada no corpo e só é possível fazer uma experiência espiritual passando pela mediação corporal, isto é, também pela experiência física. A experiência do peregrinar ajuda a perceber o que é a fé como uma caminhada. E é essa a percepção que me parece que hoje é mais viva. (…) Mais essa experiência espiritual do que a dimensão da promessa, que se situa muito ao nível do comércio com o sagrado; dou para que dês; recebi uma graça, então vou pagar; ou para que receba, faço esta parte do sacrifício. Parece-me que também ao nível da motivação há alguma transformação” (pp.239-240) – conclui o Reitor do Santuário de Fátima. E Alfredo Teixeira, com formação em antropologia, completa, muito interessantemente: a peregrinação a pé está a potenciar toda a dimensão de performatividade, de inscrição no espaço e na natureza, bem como a ideia de uma identidade em movimento, muito cara à nossa experiência contemporânea. Hoje, as pessoas não são «uma única coisa», constroem-se na mudança. Ninguém se pensa já a partir de uma lógica de imutabilidade ou de uma identidade cristalizada. A peregrinação é um gesto simbólico que descreve, de maneira lúdica e numa dimensão ritual, de forma muito eficaz, esta experiência contemporânea. Assim, “há muitos sinais que nos mostram que a peregrinação a Fátima pode estar cada vez menos dependente da tradicional religiosidade votiva, baseada especialmente na troca simbólica de dons, e mais próxima de uma religiosidade mais performativa, mais individualizada, agora com outro sentido: a realização de si mesmo, encontrando experiências fortes que são um acréscimo de motivação para os indivíduos, levando alguns a desvincularem-se de outras formas, mais sedentárias, de inscrição religiosa. Para muitos, porventura, a sua identidade religiosa pode passar a ter, como marcador essencial, a peregrinação que todos os anos se faz a Fátima. Aquilo que era o ir á missa todos os Domingos, para algumas dessas identidades passará a ser este ir a Fátima todos os anos. Há aqui mudanças de escala, que vão afectar certamente o perfil dos peregrinos e os modelos de peregrinação.” (pp.266-267).

Na complexidade que cada fenómeno encerra – onde se poder ler um ‘comércio demasiado interessado’(“eu dou para que tu dês”) pode, igualmente, descortinar-se uma reverência para com a gratuitidade, o dom recebido, a pessoa reconhecer-se incompleta (e não serão, ademais, raras as experiências de quem não tendo visto concretizado o que desejou, regressa, sempre e em todo o caso, a Fátima, evidenciando, porventura, a necessidade de um juízo mais parcimonioso de que vê de fora); onde se fala em “emancipação das formas de inscrição tradicionais” ao nível da religiosidade, e na performatividade dos indivíduos neste contexto, pode ler-se, por exemplo, tanto, segundo alguns olhares, uma “maturidade”, quanto, noutros, uma religiosidade “a la carte” sem remissão a nenhuma norma “objectivamente boa”, bem como uma pura busca de auto-florescimento sem adesão a, nem memória de, um chão comunitário, e, outrossim, a “desvinculação da forma mais sedentária de participação” assimilada quer em chave de “não acomodamento” como, inversamente, de incapacidade de compromisso (permanente) como sucede, como vem sendo assinalado, em outros âmbitos da vida contemporânea; finalmente, mesmo e quando alguém se faz à estrada, muitas vezes em companhia, sempre haverá a registar um voto de confiança que se faz naquela mesma caminhada, em si mesma – tantas vezes dura, longa, não sem penas, pese a motivação e alegria que também a percorre -, ela que ainda que realizada em intenção ou intercessão (de novo a ideia do “comércio com o sagrado”), antropologicamente não deixará de revelar um expressivo desejo de que o outro seja (o outro pelo qual se pede intercessão, ou o outro com o qual se faz caminho, de que o outro se realize, de que o outro se restabeleça se for caso disso  -, joga-se o nosso tempo – por agora, confinado.