100% Camurça.  O último homem  de blusão

100% Camurça. O último homem de blusão


O i conversou com o realizador Quentin Dupieux sobre 100% Camurça, o seu mais recente filme. Que, com os cinemas ainda fechados, se estreia hoje nos videoclubes das várias operadoras e na plataforma de streaming Filmin.


Um blusão de camurça. Foi de sentir um blusão de camurça sobre os ombros, de lhe sentir o cheiro, de colecionar peças de camurça que Jean Dujardin precisou para encontrar o personagem que Quentin Dupieux lhe propôs. Georges, o protagonista do filme que, estreado exatamente há um ano na Quinzena dos Realizadores de Cannes, tem hoje a sua estreia comercial em Portugal nos videoclubes das operadoras da TV e no Filmin. Personagem absurdo para uma história absurdamente superficial – ou talvez não.

Há uma ideia muito presente neste filme que tem a ver com a forma como a realidade pode ser capaz de atravessar a ficção. Ou a ideia de realidade como ficção também. 

Não é exatamente assim que vejo este filme, mas entendo esse ponto de vista. É isso que adoro nos meus filmes: que toda a gente veja basicamente o que quiser. Para mim tem mais a ver com o facto de o Georges [Jean Dujardin] fingir que faz filmes, tem mais a ver com este lado infantil dele. Vejo este personagem como uma criança e na verdade não penso muito em grandes análises sobre o meu filme. Sei que podemos ler coisas desse género mas, para mim, fiz um filme sobre uma criança parva.

Mas é inevitável fazer-se leituras: em 100% Camurça vi também uma crítica ao capitalismo, a todo o sistema, e a esta ideia de que o que parece é mais importante do que o que é. 

Não foi essa a minha ideia mas, se quisermos olhar para o subtexto, sim. Quando estava a ver o filme, percebi que talvez estivesse a falar sobre este tempo em que vivemos em que todos tiramos fotografias de nós próprios, todos somos narcisistas. Eu não o faço, mas muita gente faz — e está tudo bem, não tenho problema nenhum com isso. Estou só a dizer que talvez o facto de o Georges ser tão obcecado consigo mesmo, de estar sempre a olhar para ele próprio ao espelho e de, quando descobre a câmara, decidir filmar-se a si próprio, ao espelho, de novo, talvez isso seja um reflexo da nossa sociedade. No momento em que falamos imensa gente está a fazer isso: a tirar fotos de si própria ao espelho para as mostrar ao mundo. Talvez o Georges tenha sido inspirado nisso. Mas, de novo, não é dessa forma que escrevo os meus filmes. Interessa-me muito mais o subconsciente, daí que não os analise muito. É a imprensa que me obriga a fazê-lo basicamente, mas é muito engraçado: quando o mostro, há imensa gente com imensas coisas para dizer, com uma série de interpretações diferentes.

Talvez isso aconteça justamente pela forma como diz que os escreve.

Exato. Aquilo de que gosto nos meus filmes é que são tão abertos que podemos projetar aquilo que quisermos quando os vemos. Não são um mundo fechado em que eu decido o que é suposto ver-se neles.

No momento em que decide que o personagem receberá uma câmara por acaso, que o levará depois a fazer um filme como forma de sustentar a ficção que cria para os outros sobre quem é – já agora, é um filme bastante interessante – este filme transforma-se em mais do que um filme sobre este homem. É também sobre cinema. E o que é o cinema afinal.

Quando faz um filme, qualquer cineasta, mesmo que não se dê conta, está a fazer um filme sobre si próprio. A não ser que estejamos apenas a realizar um filme que alguém escreveu para nós, ou a trabalhar para um estúdio. No meu caso, como escrevo, filmo e monto sozinho, no final, sim, qualquer filme que faça será sobre mim, de certa forma. É algo que tento esconder, porque não quero que isso seja uma questão. Não acho que seja interessante para o espetador quando tudo passa a ser demasiado sobre o filme, torna-se uma peça de arte aborrecida. Gostei da ideia de dar a câmara ao personagem, esta ideia de ter alguém a filmar alguma coisa, mas é só isso.

Essas imagens que depois entram também no filme são realmente filmadas com aquela câmara, uma mini-DV de uso doméstico?

Sim, com a câmara que vemos no filme. Dei a câmara ao Jean Dujardin e tenho imensas imagens interessantes feitas por ele. Uso apenas uma pequena parte, mas foram todas feitas por ele. Foi maravilhoso trabalhar com ele, transformou-se no personagem muito rapidamente. Passei mais tempo com o personagem do que com o ator. 

Olhamos para este homem e é quase como se ele fosse o que veste. É nisso que ele acredita, pelo menos: que o que é é o que veste. No sentido mais literal que seja possível atribuir a esta afirmação, mas não só.

Tudo isso estava no argumento portanto foi fácil para o Jean entender a vibe do personagem. Mas ele é um tipo obsessivo também e esta coisa da camurça… antes de começarmos a rodagem ele começou a colecionar peças de camurça: casacos, botas, calças. Começou mesmo a fazer isso, isso divertiu-o. Só mais tarde me disse que [enquanto preparava o personagem] tinha começado a comprar peças em camurça.

Que já era o personagem antes de começarem a rodagem.

Sim, e também é a única forma de se fazer um filme assim. Não é possível fingir, ou então estamos só a fazer uma pequena comédia, uma comédia tonta. O Jean teve mesmo de entregar um pouco dele, teve de acreditar no filme para o fazer parecer real, ou seria apenas pateta. Tentámos que parecesse real. Obviamente o argumento é um bocado disparatado, mas a forma como depois fizemos o filme é bastante real.

É nesse ponto que o filme é mais bem sucedido: toda a história e a ideia deste personagem do Georges nos parecem absolutamente disparatados num primeiro momento, mas a verdade é que, à medida que avançamos, tudo nos parece, mais do que verosímil, real.

Sim. Exceto a parte do homicídio, tudo aqui nos parece perfeitamente possível. Existem pessoas assim. Alguém, por exemplo, obcecado com o Johnny Depp, que de repente começa a comprar tudo ligado ao Johnny Depp, vê todos os filmes, tem posters, usa as mesmas roupas, tudo. Há pessoas assim por toda a parte.

Como é que o Jean Dujardin chegou ao filme? 

Inicialmente estava escrito em inglês para um ator americano que adoro, mas depois teve de ser rodado em França, então tive de o reescrever e transformou-se em algo diferente. Nessa altura não tinha nenhum ator em mente mas quando comecei a pensar o Dujardin entrou muito rapidamente para a lista. Depois encontrei-me com ele e ele quase que aceitou o papel antes de ler o argumento. Interessou-lhe tanto…

Toda a ideia?
Sim. Foi tudo muito fácil com o Jean. 

E como é que chegou a ela? Esta ideia de construir todo um filme à volta de um homem obcecado com peças de camurça?

Sei exatamente de onde vem a ideia, mas é muito pessoal. Tem a ver com uma pessoa que conheci na vida, mas não acho que seja interessante falar sobre isso porque está no passado e porque se transformou num filme.

Que é outra coisa.
Sim. É a origem da ideia, mas o que é que isso interessa?

Realidade e ficção são duas coisas diferentes para si?
Boa pergunta: às vezes sim, outras vezes não. É essa a beleza de fazer filmes. Umas vezes ficamos confusos, outras… Gosto desta ideia de parar a minha vida para ir filmar uma diferente. É como viver outra vida durante uns meses. Acho que é por isso que os atores gostam do trabalho deles.

É esse mesmo impulso que sente enquanto cineasta?
Sim. Enquanto estive a trabalhar neste filme vivi obcecado com o Georges. 

Sente que está tão dentro da cabeça dos personagens como os atores que os interpretam?
Sim, é mesmo isso.