“O DCIAP e o TCIC são uns cancros”

“O DCIAP e o TCIC são uns cancros”


João Nabais é polémico, frontal e tem fama de ser um charmoso na barra de tribunal. Passou por processos como as FP-25, Casa Pia ou agora a Operação Lex.


Quais são as imagens mais marcantes da sua vida até chegar a adulto?
Escolheria, como criança até aos 10 anos, as férias grandes. Eram fantásticas. Íamos para a ilha de Faro, imagine. Eu com 10 anos de idade e os meus irmãos todos próximos, tínhamos atividades e aventuras fabulosas. Ajudávamos os pescadores na arte, a puxar o barco, a puxar as redes. Tínhamos uma relação com o mar e com as coisas do mar extraordinária. Íamos apanhar ostras, mexilhão, berbigão… tínhamos em casa toda esta variedade de coisas apenas apanhadas por nós. A isso se somava-se o peixe que os pescadores nos davam por ajudarmos a puxar as redes e o barco. Era maravilhoso, andávamos o mês inteiro descalços e de calções. Era o mês de agosto na ilha de Faro e o mês de setembro inteiro – as aulas só começavam em outubro – numa pequena aldeia no sopé do Caramulo onde ainda hoje vamos, onde temos uma quinta pequenina mas encantadora, está na propriedade da nossa família há mais de 100 anos. Quer eu, quer os meus irmãos, quer depois os meus filhos e sobrinhos, quer agora já netos, temos uma relação profundíssima e aí era uma outra vida durante as férias: liberdade relativamente aos pais, os meus pais iam deixar-nos lá com a nossa avó e ficavam também com um mês de férias de nós. Sempre foram muito práticos. E nós tínhamos uma liberdade absoluta. Subíamos, descíamos a montanha, dormíamos ao relento se quiséssemos, tomávamos banho no rio… ainda hoje temos o ritual de ir para Castelões na Páscoa, todos os anos – não pudemos ir este ano – e vamos tomar banho ao rio, mesmo com água gelada, se for caso disso. Eu, os meus irmãos, os meus sobrinhos, os meus filhos…
 

Já na adolescência… 
Na minha adolescência, entrada na fase adulta, tenho um momento maravilhoso na minha vida que foi a experiência do interrail com 17 anos, em 1972. Foi um momento de liberdade absolutamente fabuloso. Foi o primeiro ano em que houve interrail e era para ser só um ano porque o interrail foi criado para comemorar o 50.º aniversário da União Europeia dos Caminhos de Ferro. Foi uma sensação de liberdade, fui também com um amigo meu, na altura o meu melhor amigo, João Miguel. E foi um mês a viajar sem roteiro pré-establecido com rigor. Tínhamos uma ideia do que queríamos fazer. Era seguro que iríamos fazer Lisboa, Paris, Bruxelas, Antuérpia, Amesterdão e Colónia. A partir daí estava mais ou menos em aberto. É uma coisa extraordinária ter esta possibilidade, ter este privilégio. Fizemo-lo, ainda por cima, num mês encantador. Como houve uma reforma profunda no ensino universitário, as minhas aulas, em vez de começarem em outubro, começaram só em novembro. Então tive o mês de outubro para fazer isto. Fizemos esta viagem num mês que não é de turismo e num mês em que não andava a malta toda no comboio. Estamos a falar de um tempo em que entre Portugal e os países da Europa havia uma diferença absolutamente abissal. Isto era como se fosse um filme a preto e branco e lá era um filme a cores. Era uma diferença, também abissal, em termos económicos e de custo de vida. Sair daqui nesse tempo, ter que atravessar Espanha e depois chegar a França e andar por ali exigia algum controle e algum rigor nas contas, porque o custo de vida era muito caro. Inevitavelmente conhecemos a Red Light District em Amesterdão que é uma coisa absolutamente impensável para um rapaz que vivia em Portugal nesse tempo.
 

Depois dá-se o 25 de Abril.
Já adulto, evidentemente que não posso esquecer o 25 de Abril, ainda hoje digo isso. O 25 de Abril foi, até hoje, o dia mais feliz da minha vida. Mesmo os dias dos nascimentos dos meus filhos, que foram dias felicíssimos, sinceramente não tive a sensação de felicidade explosiva e colossal como tive com o 25 de abril. Essa imagem é uma imagem já muito marcante de transição para homem.
 

Como traduz essa felicidade?
Nesse dia andei ao ar livre de um lado para o outro. Apesar de o MFA repetidamente dizer para as pessoas não saírem de casa, eu fui. Ainda apanhei o Terreiro do Paço na ponta final da presença da tropa lá. Ainda fui ao Carmo, já não estava o Marcello Caetano, que se rendeu e entrou no chaimite. Achei que não ia haver nada, achei que era fake news o facto de o Marcello estar lá dentro, não seria bem verdade. A sensação é de felicidade. Tive logo a perceção de que ia haver o fim da guerra, para nós era muito importante nessa altura. Para um jovem de 19 anos, o horizonte próximo era acabar o curso e ir para a guerra. Não havia volta a dar. Estamos a falar de um tempo em que havia quatro anos de serviço militar. Normalmente, dois cá e dois lá. Além dos riscos que isso comportava, havia a interrupção da vida, era absurdo acabar um curso e depois ter quatro anos de vida militar. Tive logo a perceção – não apenas eu – do fim da guerra. Lembrei-me logo daquele fulano que tinha encontrado em Bruxelas que tinha fugido ao serviço militar, já podia voltar.
 

Quando se casa a primeira vez?
Em 1977, com a mãe de três filhos meus. Na altura tinha 22 anos, ela já tinha 23. É a Anabela, que era professora de História, agora reformou-se. Quando eu estava a fazer o curso de Direito ela estava a concluir o curso de História, vidas difíceis. Entretanto, tenho da Bela três filhos – o Tiago, o Diogo e a Ana. Depois tive uma outra relação com a mãe do meu filho Sérgio, com quem vivi relativamente pouco tempo, a Luísa. Tenho seis filhos de três mulheres. Da Conceição não tenho mas tratei a filha dela, a Joana, como filha e fui tratado como pai. Tenho três filhos da Bela, um filho da Luísa e tenho dois filhos da Paula. 
 

Qual é o primeiro grande processo mediático que tem?
FP-25. Na altura era um jovem, tinha 30 anos quando foi preso o Otelo.
 

Quem defendeu na altura?
Duas raparigas da JAR, que eram dadas como pertencentes às FP 25 e estiveram presas três anos. Defendi a Maria do Céu e a Helena Marques. Foram absolvidas. Passado um tempo ainda representei o Otelo e os dirigentes da FUP nos chamados processos crime de sangue. Foram apensos todos os processos que tinham a ver com mortes, que eram 12 ou 13. Todos eles estavam acusados por coautoria moral na prática desses crimes. Representei-os e foram todos absolvidos também. Mas isso foi muito mais tarde.
 

Tem fama de advogado das causas perigosas.
Talvez, admito que sim. Sabe que os advogados escolhem menos os processos do que se possa pensar. As coisas vêm ter connosco, os clientes procuram-nos. Eu, pelo menos, nunca procurei processo algum. Nunca me candidatei a nenhum processo. Somos procurados pelas pessoas. Na verdade, ao longo de três décadas, estive presente, posso dizê-lo, em todos os grandes processos que tiveram lugar em Portugal na área de crime. Desde o processo Casa Pia. Aliás, no arranque do processo Casa Pia representei logo dois dos três primeiros arguidos, o médico Ferreira Dinis e o advogado Hugo Marçal. Faço todo o inquérito e a instrução e quando se perfila o início do julgamento deixo de os patrocinar porque percebi que não tinha capacidade. Quando fazemos a reunião preparatória do julgamento a juíza informa-nos que vai fazer o julgamento em todos os dias da semana. Não tinha possibilidade de assegurar um julgamento desses, que logo ali na altura achei que devia ter dois anos e na prática teve quatro.

É a mesma coisa defender, por absurdo, o Hannibal Lecter (Silêncio dos Inocentes) e defender a família da criança que morreu eletrocutada em Lisboa num semáforo?
Acaba por ser a mesma coisa. Há uma regra básica que é não nos envolvermos com clientes. O cliente recorre a nós para defendermos os seus direitos. Essa é a atividade mais nobre de um advogado.

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