As grandes questões sobre o processo de desconfinamento continuam a ser alvo de debate nas sociedades ocidentais. Isto acontece sobretudo porque estamos a assistir à colisão de duas crises exponenciais: a crise de saúde pública e a crise económica e social.
Qualquer debate racional deve partir de dois pressupostos que, na verdade, são (ou até há bem pouco tempo eram) consensos sobre os quais edificamos as nossas comunidades.
O primeiro pressuposto é o de que a vida humana não tem preço. A sua defesa é a base das sociedades civilizadas. De onde decorre que a saúde pública terá sempre prioridade sobre todas as outras coisas – economia incluída.
Mas o segundo pressuposto, que não é contraditório com o primeiro, é o de que há riscos que a vida em sociedade comporta. Riscos com os quais todos aprendemos a viver e que aceitamos como parte do nosso dia-a-dia. Para além da noção de risco inerente à sociedade, há limites (humanos, psicológicos e financeiros) para além dos quais os Estados não podem e não conseguem ir na proteção da vida individual – se valesse tudo devíamos, no limite, ter todo o Orçamento do Estado dedicado à saúde, o que, naturalmente, não acontece.
Onde é que encontramos o ponto de equilíbrio entre a proteção individual e a preservação de todas as outras dimensões da vida social que são o oxigénio das comunidades e o músculo das nações é a grande questão que desafia todos os líderes políticos do nosso tempo.
Qualquer que seja a resposta, há um dado muito relevante: em Portugal e no mundo, as cidades e vilas terão um papel decisivo no processo de desconfinamento, tal como tiveram um papel crítico no combate à pandemia (ainda agora são as autarquias que estão à frente na aquisição de equipamentos de proteção individual e no controlo da população). Combatemos o vírus até agora com uma ideia de saúde pública – a quarentena – nascida nas cidades italianas, no séc. xiv. Precisamos de mais do que soluções medievais para que a nossa vida regresse a uma nova normalidade.
Que soluções podem ser essas? Cascais, à sua escala, dá um contributo para o debate nacional.
Estamos a pôr em prática uma ideia de abertura progressiva, e diferida no tempo face ao contexto nacional, em torno de valores que têm, forçosamente, de andar de mãos dadas neste novo normal: proteção, confiança, equidade e liberdade.
Quanto ao vetor proteção, a nossa ação resume-se a uma ideia simples: garantir que todos os cidadãos do concelho têm máscaras quando retomarem a vida ativa. Trabalhando com o horizonte de 1 de maio, teremos, algures por aí, capacidade para arrancar com produção própria de 3 milhões de máscaras por mês – podendo a produção ser esticada, com a introdução de um terceiro turno, a 5 milhões de máscaras/mês. Estas máscaras serão gratuitas para os maiores de 65 e grupos de risco. Para todos os outros cidadãos, as máscaras terão um custo unitário de 30 cêntimos – um valor muito baixo, qualquer que seja o termo de comparação, e só possível porque adquirimos duas máquinas para o efeito.
Quanto à ideia de confiança, vamos dar uma resposta fortíssima tomando como exemplo as melhores práticas de algumas das cidades mais bem-sucedidas no mundo no combate à pandemia. A palavra de ordem é: testar, testar, testar.
Cascais está prestes a fechar um grande contrato com um dos maiores laboratórios europeus que nos permitirá, no médio prazo, testar toda a população do concelho – incluindo a hipótese de testes em casa, uma oferta de serviço aos cidadãos de elevada exigência e complexidade logística. Este programa surge em cima das respostas que temos em vigor e que são compostas por dois centros de testes (500 testes/dia) e por rastreio em todos os lares.
A liberdade é o terceiro pilar da nossa proposta. Desejamos que os cidadãos e as empresas recuperem as suas iniciativas o mais rapidamente possível – em segurança. Por isso, manteremos a gratuitidade de transportes públicos (ao contrário da generalidade dos concelhos da Área Metropolitana de Lisboa), equiparemos os motoristas com materiais de proteção e prolongaremos o levantamento de cobrança do estacionamento à superfície enquanto isso for benéfico para a atividade económica local.
Equidade é a quarta ideia-chave. A crise pandémica começa a destapar muitas linhas de desigualdade que urge combater. Até que haja definições políticas dos Governos centrais, a resposta local é indispensável para que ninguém seja deixado para trás. A nossa resposta, dos governos locais, será tão mais robusta quanto maior for o empoderamento dos nossos voluntários e das nossas IPSS, verdadeiro exército de boa vontade contra todas as crises. É curioso notar que este vírus que nos impôs o distanciamento físico teve como resposta a aproximação social. Todas as formas de capital sofreram uma enormíssima erosão com a crise. Todas, menos uma: o capital social, entendido como o valor do conjunto de relações que sustentam a sociedade.
As nossas IPSS e o esforço voluntário da sociedade civil são dos mais poderosos estabilizadores sociais de que o país precisa. Mas, para funcionarem plenamente, precisam de financiamento e apoio. Cascais está a fazê-lo.
Cheguei à presidência da Câmara de Cascais no pico da crise, em janeiro de 2011. Quase dez anos depois, volto a ter a enorme responsabilidade de liderar a comunidade num período de tremenda dificuldade.
Embora ninguém esteja preparado para crises desta dimensão, tenho a convicção de que, com estratégia, determinação e boa vontade, ficaremos um bocadinho mais perto de vencer este maldito vírus.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira