É verdade que não é chegada ainda a Festa, mas sinto ser meu dever quebrar o jejum – sem emenda – para «disser alta voz amem, alleluya». É que, como tão bem disse John Cage, «I have nothing to say / and I am saying it / and that is poetry / as I needed it.»
Amanhã, 25 de Abril de…, o «progresso» é feito em cima da besta, e a abada – que como todos sabem é a fêmea do rinoceronte e o chifre que o animal tem entre a testa e o focinho – dando às de vila-diogo, parece ser a metáfora do país futuro.
Voltando a John Cage: «As far as consistency of thought goes, I prefer inconsistency.» Porquê? – inquirirão. Porque Cage foi beber a Varèse, porque Varèse foi um precursor, porque Varèse escreveu, em 1931, «Ionização», a Revolução da Percussão. Como dizia: «O meu objectivo foi sempre o da libertação do som, abrir largamente à música todo o universo dos sons.»
A que vem a inconsistência? Se deambularmos um pouco pela história da música ocidental, constatamos que desde Bach a Brahms, a percussão, na orquestra, servia apenas para reforçar os acentos já contidos no discurso dos outros instrumentos, e na ópera cumpria um papel evocador ou descritivo. Já em finais do séc. XIX, a percussão passa a dar cor às obras. O tecido sonoro, elegante e luxuriante de um Strauss, de um Debussy ou de um Ravell, ganha riqueza com as castanholas, a celesta, a marimba, os tambores. No início do século XX, os compositores renovam o jogo dos instrumentos de percussão pela influência do folclore eslavo e da bateria dos grupos de ragtime. Stravinski e a sua «História do Soldado» terminando com um solo de bateria estrondoso, ou o andante do «Primeiro Concerto para piano» de Bartok, são bons exemplos disso. Estava por vir um mundo novo. Ao neoclassicismo das sonatas e dos concertos de Poulenc e Stravinski, então em voga, vai suceder-se o vigor e o fulgor de Varèse: Ionização. As figuras sonoras usadas por Varèse rompem com a escala tradicional, escala percebida, erradamente, como sendo O universo sonoro.
Liberta da sua função auxiliar dos instrumentos da orquestra e das vozes, a percussão ganha uma função singular. Mais do que serem escutados isoladamente ou remeterem para o folclore ou qualquer exotismo, os elementos da percussão traçam planos e volumes sonoros de densidades variadas, numa linguagem quase visual, desenhando autênticos corpos sonoros, «metamorfoseando-se, mudando de direcção e velocidade, atraídos ou repelidos por forças diversas», como disse um crítico.
A termos de estabelecer uma analogia entre a música de Varèse e os artistas plásticos, Calder, Léger, Miró, ou Albert Gleizes dariam bem a ideia das suas preocupações e interesses, antecipando nisso a música electroacústica – anos 1950 – com as suas bandas magnéticas difundidas por altifalantes que projectam planos sonoros movendo-se no espaço. Fecundo, Varèse mostra a força da percussão, extraindo dela novas e inusitadas sonoridades. E influencia outros grandes compositores, criando-se assim um repertório rico com as obras de autores como Cage, Stockausen, Xenakis, Morel, etc.
A causa da «libertação dos sons» veio, pois, a ganhar novos e muitos outros defensores. E o unicórnio – precursor – há-de gerar a Revolução da Percussão.
Quero crer.