Ao ler estes contos, lembrei-me de Agustina Bessa-Luís, a “indomável”, como extraordinariamente a definiu Eduardo Lourenço. Agustina que dizia «Nasci adulta, morrerei criança». Com certeza Agustina também se revia nesta meninice, já que ela, como eu, tanto vibrava com os Russos.
Musia, petit nom com que era carinhosamente tratada, era uma criança diferente. Não mais triste ou mais encantadora, não mais desbotada ou mais azul. Mas é à luz deste tom azul, às vezes mais nublado, outras mais cintilante, que nos deixa extasiados espreitar junto dela o seu cordel de trevas e fantasias.
Quem não teve infância, não tem um túmulo. Sem túmulo, não serenamos as feridas, não descerramos sorrisos.
Como Agustina, também me sentia velha perto das outras crianças. Talvez, porque como Musia, também eu via o Diabo. Felizmente ainda hoje o continuo a ver. Não sei até quando. Assusta-me não saber até quando.
O invisível, foi de longe, o que sempre mais me magnetizou.
O fundo dos lagos, o fundo do corredor, o fundo das gavetas, o fundo dos olhos incolores, o fundo das escadas, o fundo dos homens. Lutava, como ainda hoje luto, contra a tentação de ir ao fundo porque desconfio que talvez não quisesse regressar nunca. Mas aí é que está a maravilha da transgressão. A hipótese de nunca regressarmos. O invisível é o outro lado da vinha, da montanha, do avesso.
Quando a Teresa morreu, minha amiga irmã, o meu filho mais velho perguntou-me baixinho agarrado às minhas lágrimas «Mãe viste os anjos levarem a Teresa?». Nestes contos, os Anjos, Deus e o Diabo são um só. Talvez nem eles o saibam, mas comungam o mesmo Éden. A ternura, a aventura, a descoberta, o desalento, as pequenas alegrias, os pequenos ressabianços, a solidão.
Estamos todos em confinamento fechados em casa com os nossos filhos. Olhando para os meus, por um lado fico feliz por nenhum ser a criança que nunca cheguei a ser, por outro, acredito que esta prova a que eles também estão submetidos (se bem que menos sujeitos talvez pela sua imunidade inocente) os fará crescer. Estou certa que a solidão os fará mais fortes, mais dóceis, mais próximos do próximo.
A solidão-solidão, este estado paliativo em que temos vivido nas últimas semanas, também nos fará crescer a todos. Crescer, estender os braços, estreitar os abraços.
Tsvietaïeva não teria visto Diabo nenhum, nem nós tão pouco o poderíamos ter imaginado, desenhado, desejado nosso se não tivesse ela de perto conhecido a solidão.
A ti devo (assim começa Marco Aurélio o seu livro) a minha primeira consciência de pertencer aos grandes e aos eleitos, pois que não visitavas as outras meninas da nossa casa. A ti devo o meu primeiro crime: um segredo na minha primeira confissão depois do qual já estava tudo transgredido. Eras tu quem destroçava cada um dos meus amores felizes, corroendo-os com as apreciações e rematando-o com o orgulho, já que me fizeste poeta, não mulher amada. (p.57)
Podia jurar que foi este Diabo, esta transgressão, que fez também de mim poeta. Por isso, como Musia também me sinto em dívida para com ele, com esse Diabo. Esse Diabo, que como só ela desde menina sabe, é o seu “anjo favorito” e aqueles que o «vêm como uma mosca, o Rei das moscas, como miríades de moscas- são moscas que não vêm mais além dos seus narizes». (p.57)
Esse Diabo, “Myshaty, o querido dogue cinzento”, foi quem a brindou com o bem e o bom. Foi quem lhe «enriqueceu a infância com o secreto, com toda a prova de fidelidade, e mais ainda, com todo esse mundo, já que sem ti não saberia que existe. (p.56)
O que seria de nós sem um Diabo que nos tirasse do trilho e nos tentasse a toda a hora em segredo? Para onde fugiríamos nós sem a cordilheira de dois mundos?
Intenso, sedutor, apaixonante, secreto. É assim que o leitor deve querê-lo, guardá-lo, escondê-lo dentro de si, bem fundo e deitar-se em concha todas as noites a seu lado. Ninguém precisa de saber.