Dia Mundial do Livro. O que andamos a ler

Dia Mundial do Livro. O que andamos a ler


Vinte e três de abril, data em nasceu e morreu William Shakespeare. Duplo dia de efeméride, portanto, sobre o qual recaiu em 1995 a escolha da UNESCO para assinalar o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor. Este ano, numa altura em que livreiros, autores e editores vão fazendo o que podem para…


De Jorge Amado ao Holocausto, com um pé em Hemingway

por Mariana Madrinha

Dou por mim a pensar em como antes conseguíamos levar a bom porto todas as tarefas que íamos encaixando nos nossos horários, num Tetris que me parece agora impossível. Por aqui, estamos em teletrabalho. É certo que ganhei o tempo que perdia em deslocações e, ainda assim, parece que as horas me fogem. Serve isto para dizer que, contrariamente ao que antevia (ou idealizava?), não tenho lido tanto como queria. Pelo menos, assim o pensava quando me pus a escrever estas linhas – depois percebi que, afinal, não era bem assim. Terminei um livro que se vinha arrastando, continuo com a leitura a meio noutros dois, li um por inteiro e estou quase a terminar o último em que peguei ainda esta semana. Começo então pelo primeiro destes casos: A Mais Breve História da Alemanha, de James Hawes (D. Quixote, março de 2019), escritor que, num dos seus anteriores trabalhos, tinha até previsto o Brexit (em Speak for England, editado em 2005). Mais de dois mil anos de história passada nas margens cada vez mais amplas do Elba e que trazem as reminiscências do Sacro Império Romano-Germânico, as lutas com a Prússia à cabeça, a “eleição” dos monarcas (entre uma série de outros fatores) para cima da mesa na hora de explicar a ascensão dos nacionalismos, o flagelo nazi e a fulgurante economia que hoje lidera a Europa. Depois vêm as duas leituras em progresso: a biografia de Jorge Amado, assinada por Josélia Aguiar e editada entre nós pela D. Quixote no ano passado. Depois da Baía, a sua terra natal e mãe solteira da sua obra, Jorge Amado seguiu para o Rio de Janeiro para cursar Direito, na década de 1930, e é nesse ponto que me encontro. Levo ainda a mais de meio caminho o livro De Língua Afiada – Mulheres que Fizeram da Opinião Uma Arte, de Michelle Dean (Quetzal, janeiro de 2020), que nos traz curtas biografias de autoras como Susan Sontag, Dorothy Parker, Hannah Arendt, Rebecca West, Joan Didion e Mary McCarthy. Nunca pensei sentir tanta empatia por Sontag. Houve ainda um livro que li de uma assentada, no qual peguei por acaso: Uma Centena de Milagres. Como a Música Me Ajudou a Sobreviver ao Holocausto, de Zuzana Ruzickova e Wendy Holden (Vogais, 2019). Nunca lhe tinha dado atenção por causa do título, e dei por mim perdida na história impressionante de sobrevivência de Zuzana Ruzickova, que resistiu às condições inumanas vividas no gueto de Terezín, às quais se seguiu uma batalha pela vida nos campos de Auschwitz e Bergen-Belsen. Ficou com as mãos quase destruídas pelo trabalho forçado, mas o amor pela música e a disciplina extrema fizeram com que, depois da guerra, se tornasse uma grande cravista, um instrumento quase caído no esquecimento e que a própria ajudou a pôr no mapa do século passado. Tenho ainda regressado amiúde a O Archote no Ouvido (Cavalo de Ferro, 2018), segundo volume da autobiografia de Elias Canetti. Por último, comecei esta a semana a ler o Jardim do Éden, de Ernest Hemingway, obra publicada postumamente (edição da coleção Mil Folhas). A perversidade do trio amoroso protagonista pouco ou nada me tem dito quando comparada com as descrições das praias de areia quente de Espanha e do sul de França, do moreno impossível dos corpos e do sabor de umas férias que nunca mais acabam. Sinais dos tempos.

De Língua Afiada  – Mulheres que Fizeram da Opinião Uma Artede Michelle Dean 
Quetzal Editores, 2020 

 

 

Um exagero, uma loucura… ou nem por isso?

por José Cabrita Saraiva

Um dia destes, enquanto navegava no site de um jornal estrangeiro (penso que seria o Guardian), vi um texto de opinião de alguém que dizia que, devido ao confinamento, estava a ler dez livros ao mesmo tempo. Embora eu próprio tenha o hábito de ler vários livros em simultâneo, achei dez um exagero, senão uma loucura, e perguntei para mim mesmo: “E será que está a perceber alguma coisa?”

De momento ando a ler A Cidade Antiga, de Fustel de Coulanges, um clássico sobre a Grécia e Roma, as suas crenças e instituições. Diria que, tirando as notas com passagens não traduzidas em grego e em latim, estou a achar fascinante. Mas é uma leitura densa, que avança lentamente, pelo que entretanto procurei algo mais ligeiro. A escolha recaiu sobre O Oficial e o Espião, de Robert Harris, um thriller empolgante sobre o caso Dreyfus, a condenação injusta de um judeu, oficial do exército, por traição, que abalou a França de finais do séc. xix.

A estes dois, que estou a ler de uma ponta à outra, junta-se um terceiro, que leio aos fins de semana, de preferência ao ar livre: Tempo de Dádivas, de Patrick Leigh Fermor, o primeiro volume do relato de uma viagem a pé entre a Holanda e Constantinopla em 1933, mas escrito só na década de 1970.

Depois há outros livros em que vou pegando ocasionalmente, sem compromisso: leio umas páginas salteadas num dia, uns dias depois volto a pegar neles e leio mais umas páginas, e por aí fora. É o caso de O Livro de Horas, de Rainer Maria Rilke, que vou lendo aos poucos, como se fosse uma bebida rara que se bebe em pequenos goles para melhor lhe tomar o sabor; de Pio xii e o Terceiro Reich, um estudo inquietante de Saul Freidländer; de Andanças com Heródoto, do repórter polaco Ryszard Kapuscinski, que li há uns anos e do qual não me canso.

Anteontem acordei a meio da noite sem sono, desci até à sala e li algumas páginas de O Silencieiro, de Antonio di Benedetto, até me sentir menos desperto. Conta a história de um homem que vive obcecado pelo ruído e anda à procura de uma casa onde não seja incomodado por quaisquer barulhos. Já mais sonolento, regressei à cama e lembrei-me facilmente de mais três ou quatro títulos em que peguei por estes dias. Pus-me a fazer contas. O artigo do Guardian falava em dez livros? De repente, já não me parecia assim tanto.

A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges
Clássica Editora, 1988

Um romance escrito a meias com alguns fantasmas…

Por Diogo Vaz Pinto

Comecemos por um aforismo: “Quando o superficial me cansa, cansa-me tanto que, para descansar, necessito de um abismo”. Nestes dias, os abismos vão sendo possíveis através de algumas leituras. Como os versos desgarrados e de pontaria infindável do argentino Antonio Porchia, que escreveu uma dessas obras solitárias, singularíssimas, Voces, uma reunião de frases que estremecem de tão sucintas. “Ajudar-te-ei a vir, se vieres, e a não vir se não vieres”. É justamente o tipo de literatura que por estes dias adquire a veemência de quem se exprime rasando o silêncio, e que nos diz que “quem não enche o seu mundo de fantasmas, acaba sozinho”. Neste volume originalmente publicado em 1943, e que nunca teve uma edição portuguesa, podem ler-se uma série de noções de defesa dessa soberania de si mesmo, um escudar-se da febre, da doença, dessa suspensão entre dois mundos, recusando-se a ser consumido pela sensação de paranoia. “O que há fora de mim é uma imitação tosca do que há dentro de mim”. Na ordem das noções profiláticas, talvez esta forma de automedicação literária seja das que mais nos imunizam, relativizando as contrariedades, colocando-nos na vizinhança dessas figuras cuja ficção consome a realidade e vai para além dela, figuras mais contemporâneas deste momento do que a maioria dos vivos, habitando no fio entre as incertezas avassaladoras do presente. Assim, neste mês e meio de confinamento forçado, as leituras têm-se sucedido de forma bastante caótica, como fragmentos lidos em voz alta para fantasmas que vamos tentando seduzir, para formar uma assembleia qualquer, num romance que se entretece de uma infinidade de ecos entre quatro paredes. Para isso, além dos aforismos de Porchia, vou-me aproveitando do assombroso vigor poético que colho nas páginas de A Morte É um Acto Solitário, de Ray Bradbury (ed. Cavalo de Ferro, maio de 2019), um romance que arranca o esqueleto de um policial e o leva para dançar uma espécie de dança ritual nas ruas marginando o mar de Venice, na Califórnia, outrora uma “exuberante estância balnear pujante de vida e movimento, ponto de encontro de estrelas de cinema, turistas e veraneantes”, e agora um cenário desolado, envolto em sombras e nevoeiro, onde vão ocorrendo misteriosas mortes e desaparecimentos. Tenho-me também aproveitado sobremaneira do percurso indagador de Claudio Magris em livros como Danúbio (ed. Quetzal, 2010) ou Ilações sobre um Sabre (ed. Difel, que já só se encontrará nos alfarrabistas), nesse regime em que uma erudição estarrecedora se passeia entre a crónica e a História, num fôlego em que a narrativa-ensaio faz o mundo girar segundo uma rotação e translação animadas da consciência e da capacidade de lhe emprestar um sentido humano, e isto com o apelo da indómita clareza com que Magris “cavalga através da vida e ao encontro do futuro, com uma nitidez clássica, a sintaxe que hierarquiza o pó caótico do mundo e põe as coisas no seu devido lugar”.

Quanto à poesia, tenho-me aproveitado sobretudo da “vitalidade desesperada” dos versos de Pasolini, na excelente tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, reunidos no volume Poemas (ed. Assírio & Alvim, 2005). Pasolini consegue erguer figuras cheias de radiância e volúpia a partir da imagem que nos vem agora do mundo como um “montão/ de estilhaços cintilantes, detritos casuais,/ varridos por um cataclismo, e agora calmamente derramados/ entre os espaços celestes e estas extensões de bairros/ na periferia” da própria vida, e, com exemplos destacados, mostra-nos porque uma “mente histórica engendra história”, andando num vaivém, com as formas poéticas e anónimas próprias da juventude.

A Morte é Um Acto Solitário de Ray Bradbury
Cavalo de Ferro, 2019