Parece ter sido há uma vida, mas foi ainda em fevereiro que, ao Teatro Nacional D. Maria II, John Romão levava um Romeu e Julieta que, não deixando de ser o de Shakespeare, era o seu. Num levitar imóvel ao longo de toda o espetáculo, os corpos de Romeu e de Julieta ansiavam-se, encontravam-se, não se podendo tocar. Falava na altura o encenador (e nos últimos anos diretor da bienal BoCA, que fundou) sobre os mecanismos que os corpos, presos nesse estado de suspensão, encontravam para interagir entre si. Uma imagem que, descrevia, se equilibrava entre estados dialéticos que já conhecíamos, para um novo: “Um estado desconhecido, um território de que falamos muito que é um não-lugar. Não podemos dizer concretamente o que aquele corpo está a fazer ou em que lugar aquele corpo está: está precisamente entre a verticalidade e a horizontalidade, entre o céu e a terra, entre a vida e a morte. E nesses estados intermédios – até falo muito de corpo-intermédio – não podemos dizer o que são, não podemos concretizar”.
Longe de imaginar estava então John Romão de que o mês que se iniciou com a última récita desse espetáculo que tinha como protagonistas João Cachola e Mariana Monteiro seria o mês em que esse estado de imobilização, de “inércia”, nas palavras com que o revisita por estes dias, em que nos apresentava Romeu e Julieta se transformaria num novo estado generalizado. Para as sociedades atuais, para as economias, para todo um setor artístico impossibilitado de se manter ativo nos moldes que eram até aqui conhecidos perante o isolamento imposto pela pandemia de covid-19. Mas neste mês de abril cá está ele, agora como diretor da BoCA – Bienal de Artes Contemporâneas, que se lançou ontem para uma edição em streaming: a BoCA Online, que decorrerá (pelo menos) até ao final do próximo mês de junho neste “não-lugar” que é o online.
Desta primeira semana de programação, que arrancou ontem a primeira das sessões de Homework (segmento da programação em que, inspirada no movimento Fluxus, a BoCA convida artistas para escreverem instruções para ativação em casa) argentina Cecilia Bengolea, juntam-se ainda, hoje, Gonçalo M. Tavares e o norte-americano Bill T. Jones para uma conversa online, a transmissão de Diaptasia, performance de Otobong Nkanga com curadoria de Catherine Wood (uma parceria da BoCA com a Tate Modern e a Coleção Fundação de Serralves, uma atuação de Odete, numa performance comissariada pela BoCA “através do dispositivo relacional corpo-câmara-casa”, e ainda, no domingo, às 16h, uma sessão da comunidade de leitura Ecocontemporâneos, já em início de confinamento lançada por John Romão, desta vez com a participação de Mariana Monteiro.
Um programa que John Romão descreve, no editorial com que anuncia a BoCA Online, como um programa “de reflexão sobre o estado do mundo e sobre as arquiteturas do sensível que habitamos agora: o corpo, a casa e a câmara”. Elementos estabelecidos como “referências centrais da história da experimentação artística, que liga o corpo performativo à tecnologia e ao espaço doméstico, a que hoje estamos circunscritos e que nos interessa problematizar neste ciclo”.
E é na suspensão — de novo a suspensão — “que nos coloca numa dúvida democrática e reclama de nós as utopias e o exercício da liberdade por via dos usos da imaginação” que esta edição especiaç da BoCA procura produzir, nas suas palavras, não conhecimento mas “desconhecimento, dúvidas e questões” como forma de projetar os “afetos expectantes” de que nos fala Ernst Bloch “sobre o futuro para pensar a performatividade”.
Entre os nomes já confirmados até ao final de junho, aos quais se juntarão outros, estão já Ailton Krenak, Ana Gomes, Anabela Mota Ribeiro, André Lepecki, Alexandra Pirici, Bill T. Jones, Catarina Vaz Pinto, Cao Fei, Cecilia Bengolea, Dora Garcia, Gerard & Kelly, Gonçalo M. Tavares, Joana de Verona, Lia Rodrigues, João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira, José Bragança de Miranda, Maria Mota, Mariana Monteiro, Mariana Tengner Barros, Meg Stuart, Miguel Moreira, Odete, Os Espacialistas, Pedro Barateiro, Sara Barros Leitão, Salomé Lamas, Tania Bruguera e Tânia Carvalho.
Paralelamente ao início da programação do BoCA Online, a Boca anunciou, numa nota intitulada “Somos solidários com o setor artístico”, uma plataforma de crowdfunding internacional “com o objetivo de apoiar financeiramente artistas, técnicos e produtores culturais, de qualquer território artístico, até 35 anos, em situações de comprovada precariedade”. A eles destinar-se-á o total das receitas angariadas no crowdfunding. Segundo a bienal, brevemente será disponibilizada online informação sobre o processo de candidaturas para beneficiar deste apoio.