Num dos seus livros, As Leis, Platão discorre sobre o papel do legislador, que deve ser “um verdadeiro educador dos cidadãos” e cuja missão principal é prevenir as transgressões, em vez de castigar quem as pratica. E como a prevenção se deve antepor ao castigo, o legislador deve criar normas que ajudem o cidadão a praticar voluntariamente o que for justo.
E embora Platão pensasse que “a verdade é bela e durável e não se pode educar com mentiras…”, também admitia que, para boa governação, se pudessem conceber “mentiras úteis que persuadissem espontaneamente as pessoas a ter uma boa conduta, em benefício da cidade”.
Todavia, logo esclarecia que a mentira apenas se justifica como exceção, quando é “útil aos homens… para os proteger deles próprios ou dos seus inimigos…”, e que só pode ser usada pelo governante, sendo o seu uso estritamente vedado aos restantes cidadãos. Apenas os chefes têm a prerrogativa de usar a “nobre mentira” como forma de manter a “pólis” unida e serena.
Antecipou assim Platão o princípio depois definido por Aristóteles de que a virtude está no meio de dois extremos, colocando a “mentira nobre” entre nunca mentir e mentir a qualquer preço.
Claro que todos os Governos usam a mentira, justificando-a pelo bem do cidadão.
Também agora a covid-19 vem legitimando um rol diário de fingimentos sob a capa de mensagens de serenidade, as tais “mentiras nobres” para benefício da “cidade”, mas, porventura, apenas forma de autodefesa dos próprios governantes.
Logo a começar pela afirmação de que “não há grande probabilidade de chegar um vírus destes a Portugal” e a continuar pela palavra primo-ministerial de que “até agora, não faltou nada no SNS e não é previsível que venha a faltar”. Mentiras logo desfeitas pela observação comum e confirmadas pela generalidade dos profissionais da saúde e suas ordens representativas que reclamavam por aquisições essenciais, retardadas mesmo em relação aos já serôdios avisos da OMS.
A carência de máscaras, impeditiva do seu uso generalizado, foi escondida na “falta de prova da sua utilidade”, argumento que foi desaparecendo à medida da aquisição desse material.
Também a falta de testes foi negada, por só se justificarem naqueles que apresentavam sintomas, mero eufemismo para gerir o stock de forma a não aparentar ruturas, encapotando tardias aquisições, mas deixando desprotegidos doentes internados e agentes de saúde, como também a generalidade dos cidadãos, assim tornados propagadores involuntários do vírus.
O amparo dos idosos foi proclamado prioridade, mas os lares foram convertidos em bombas infecciosas, desesperando pela chegada dos sempre anunciados testes e evacuações e contabilizando falecimentos dia a dia, eutanásia não consentida e sem perdão. E os hospitais de campanha permanecem fechados.
E, antecipando-se às “atempadas” e proclamadas encomendas de ventiladores, foram as unidades oferecidas as primeiras a chegar.
Nunca como hoje o primeiro-ministro se desdobrou em entrevistas, visitas ou idas televisionadas a supermercados, e os ministros vão-se atropelando nas televisões, aparentando ação em tempo real, como se tal perda de tempo na pantalha fosse compatível com o comando, o planeamento, a logística das operações e a boa gestão dos recursos disponíveis com vista a ganhar a “guerra”.
A capacidade hospitalar sempre reafirmada tornou-se ficção, já que a percentagem de internados vem diminuindo em relação ao crescente número de infetados, o número de falecidos mais do que dobra os que estão nos cuidados intensivos e muitos dos falecidos nem internados foram.
É seguro que tanta mistificação, de tão repetida, se vai tornando para muitos verdade indiscutível. Mas certamente não cabe nas “nobres mentiras” que o bem do povo poderia consentir. E bem dispensava.
Economista e gestor
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
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