Não era um desses escritores que existem apenas para ser lidos, ou assim o recordava ontem numa homenagem publicada no El País o seu “amigo, colega e admirador” Santiago Gamboa: “Os seus leitores não queriam apenas lê-lo como tê-lo como convidado para jantar nas suas casas, em cada dia das suas vidas”. A prova é a noite que recorda de um teatro de Trieste, nos já longínquos anos 1990, onde assistiu a um “evento extraordinário”: o regresso do ator, encenador e realizador italiano Vittorio Gassman (1922-2000) ao teatro pondo fim a um afastamento de anos motivado por uma depressão numa noite em que, entre uma série de monólogos, recitou um texto que encomendara para a ocasião a Luis Sepúlveda. A data não havia sido escolhida por Gassman ao acaso.
Era o dia 4 de outubro de 1996, dia de aniversário de Luis Sepúlveda, que não esperava que antes que tivesse início a récita a plateia se iluminasse para que lhe fossem cantados os parabéns. Respondendo ao gesto, o escritor chileno terá dito, nas palavras ontem reproduzidas por Gamboa, enquanto brindava a todos, que “para ele a amizade e literatura eram a mesma coisa, as duas faces da mesma lua”.
Eram os anos em que Sepúlveda firmava o lugar que vinha conquistando para si na Europa. Momento seminal para o seu sucesso no continente onde passaria os 23 anos que seriam os últimos da sua vida (em Gijón, nas Astúrias, para onde se mudou com a mulher, a poeta Carmen Yáñez, em 1997) foi a tradução de O Velho Que Lia Romances de Amor (1988) para o francês, em 1992.
O velho era Antonio José Bolívar Proaño, um homem que, na tribo amazónica dos shuar, ocupava as noites solitárias que lhe restavam até que se acabasse a vida lendo os romances que lhe levava, duas vezes ao ano, o dentista, Rubicundo Loachamín. “Desde que foi publicado que começou a ser lido de forma frenética”.
Foi nesse país que, recorda o amigo, teve início “o seu impressionante êxito”. “Quando a editora Anne Marie Métailie, dona das Editions Métailie, decidiu apostar no romance de um chileno desconhecido que havia ganhado em Espanha o prémio Tigre Juan”.
Seguiram-se Itália, em 1993, logo depois Portugal, onde começou a ser editado por Manuel Valente, das Edições Asa, e depois o resto da Europa, e mais: aos 70 anos Luis Sepúlveda chegou com os seus livros traduzidos, segundo a Porto Editora, que atualmente publica a sua obra, para mais 60 idiomas e mais de 18 milhões de exemplares vendidos por todo o mundo. O que de bom lhe trouxe essa explosão no continente europeu, faz questão de notar Santiago Gamboa, depressa se dedicou a repartir com colegas e amigos. Em Gijón, onde passou as últimas décadas, fundou e dirigiu o Salão do Livro Ibero-americano como forma de promover o encontro de escritores, editores e livreiros latino-americanos com os homólogos europeus. Em Portugal, onde está publicada a totalidade da sua obra, era presença assídua em cada edição da Feira do Livro. Em 2016 foi distinguido com o Prémio Eduardo Lourenço.
Mas não apenas de histórias — essas “jóias preciosas” como ontem as descrevia Lídia Jorge, que encontra numa “experiência de vida vivida no fio da navalha” a explicação para a sua “singular arte de contar” — ou da generosidade que lhe encontravam entre brindes e partilhas se fez a vida de Luis Sepúlveda. Lucho, como era tratado pelos que lhe eram próximos, que à Porto Editora a escritora descrevia como um “contador maior”. E um dos “escritores mais queridos das últimas décadas”.
entre gatos e uma gaivota Em História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar (1996), quando a gaivota descobre que é uma gaivota e não um gato igual aos que se passeiam pelo porto de Hamburgo, estará lá o gato, o mesmo que a ensina a voar, para lhe dizer: “Não te contradissemos quando te ouvimos grasnar que és um gato, porque nos lisonjeia que queiras ser como nós; mas és diferente, e gostamos de que sejas diferente. Não pudemos ajudar a tua mãe, mas a ti sim. Protegemos-te desde que saíste da casca. Demos-te todo o nosso carinho sem nunca pensarmos em fazer de ti um gato. Queremos-te gaivota”. E no papel de gato foi-se o escritor chileno colocando por várias vezes ao longo da vida.
Nascido em Ovalle, no Chile, a 4 de outubro de 1949, Luis Sepúlveda começou a escrever quando frequentava ainda o Instituto Nacional de Santiago, influenciado, segundo a biografia disponível no site da Porto Editora, por uma professora de História. Filho de uma enfermeira com origens mapuche e de um comunista proprietário de um restaurante, cedo Sepúlveda começou a formar uma consciência política que haveria de o levar a militar no no Exército de Libertação Nacional do Partido Socialista. Antes disso, com apenas 15 anos, ingressou na Juventude Comunista do Chile, da qual acabaria expulso quatro anos depois.
Estudou na Escola de Teatro da Universidade do Chile, da qual viria a estar à frente enquanto diretor, antes de se ter formado em Ciências da Comunicação pela Universidade de Heidelberg. A sua passagem pela Alemanha, aonde rumou em 1982, e pelos 14 anos seguintes, teve como motor a sua paixão pela literatura alemã. Fez-se militante ecologista, trabalhou durante cinco anos como correspondente da Greenpeace.
No seu país, ainda durante a década de 1970, havia sido membro da Unidade Popular. Com a tomada do poder por Augusto Pinochet viu-se forçado a deixar o país e durante anos viveu entre o Brasil, o Uruguai, a Bolívia, o Paraguai, o Peru e o Equador, entre os shuar, numa missão da UNESCO, experiência que viria tornar possível a história de O Velho Que Lia Romances de Amor. A luta política não a travou apenas no seu país: chegou a integrar, a partir de 1979, as fileiras sandinistas da Brigada Internacional Simon Bolívar, no combate à ditadura de Anastácio Somoza, na Nicarágua. Foi depois da vitória sandinista que se fez jornalista.
Mas já aí se havia feito escritor. Com Crónicas de Pedro Nadie, o primeiro, editado em 1970, venceu o Prémio Casa das Américas e uma bolsa de estudo na Universidade Lomonosov, em Moscovo, onde não duraria contudo mais do que cinco meses. Foi expulso por “atentado à moral proletária”.
Foi ativista, jornalista, realizador e argumentista, mas foi através dos livros e das histórias que chegou ao mundo que ontem dele se despediu. Foi no regresso às Astúrias, depois de em fevereiro ter participado no Correntes d’ Escritas, na Póvoa de Varzim, que foi diagnosticado com covid-19. Doença à qual, internado no Hospital Universitário Central de Astúrias desde então, acabou por sucumbir. Tinha 70 anos.