Numa das travessas do Bairro da Bica, em Lisboa, cai uma chave. Segurando com uma mão o saco que carrega ao ombro, Carla Figueiredo apanha a chave da calçada, ainda húmida das gotas de chuva que caíram minutos antes. De luvas azuis, a carteira abre a porta, deixa a correspondência e segue com as entregas. “É tudo confiança”, explica, enquanto procura no molho de chaves que traz consigo aquela que vai abrir a porta à sua frente. Carla Figueiredo, que entrega cartas e encomendas naquela zona há “sete ou oito anos”, explica que ter chaves que não são as de sua casa é algo habitual, já que, por norma, as pessoas não estão em casa para receber as encomendas à hora a que ela passa por ali.
Apesar de o seu dia de trabalho começar às 8h00 no centro de distribuição dos CTT, onde organiza o material, Carla Figueiredo começa a distribuir a correspondência na zona da Bica duas horas mais tarde. Agora, devido à pandemia causada pela covid-19, distribui também no Chiado, uma das zonas vizinhas. “Mas é muito diferente. Este é o meu berço”, afirma, enquanto vai cumprimentado as pessoas por quem vai passando nas travessas que se cruzam com a Rua do Poço dos Negros.
A meio da manhã, a rua não está vazia. “Ao início, as pessoas fugiam um bocadinho de mim”, conta, explicando que, apesar de não se verem tantas pessoas na rua como há dois meses – quando os primeiros casos de covid-19 estavam longe de ser detetados em Portugal –, ainda se veem muitas. “Vejo um bocadinho menos. Aquelas pessoas que têm problemas de saúde resguardam-se, mas há outras que não têm cuidado nenhum”, afirma, dando o exemplo dos mais velhos, “que andam sempre na rua”.
“Hoje não há nada para si”, diz Carla Figueiredo a um homem que apareceu à janela quando a carteira passava. “Aqui estou em casa”, desabafa, explicando que inicia sempre o seu trajeto com a distribuição de encomendas – que, durante a pandemia, têm vindo em maior número. Segundo fonte oficial dos CTT, tem sido registado durante este período excecional “um forte crescimento nos produtos essenciais”, de que são exemplo os produtos de higiene, saúde e alimentação, mas também “consumíveis, material informático e livros”.
Trabalhar para REaprender Apesar de agora ter mais encomendas para entregar, Carla Figueiredo continua a cumprir o horário que fazia antes da pandemia, mas confessa que o novo método de trabalho não é fácil e que, no início, lhe fez confusão o uso do material de proteção individual. Embora as luvas azuis lhe deem mais segurança quando apanha as chaves que lhe confiam pela janela, este material também “atrapalha”. “Temos de reaprender a trabalhar com elas”, confessa, explicando que ao longo do dia vai trocando as luvas pelas que tem guardadas na mala que traz ao ombro e nos bolsos da farda cinzenta.
Por trás da viseira, onde está inscrito o seu nome, Carla Figueiredo não tem nada a esconder. “Eu sou sincera”, diz, antes de confessar que nunca usou máscara. Apesar de o álcool-gel ter sido usado sempre desde o início da pandemia, só começou a proteger o rosto quando chegaram as viseiras, há cerca de três semanas. A solução é melhor para Carla Figueiredo. “A única coisa chata é quando está a chover. Temos de andar com um paninho a limpar”, brinca.
Apesar de o uso de luvas e da viseira estar destinado ao horário de trabalho, não é apenas quando abre portas na Bica que Carla Figueiredo tem cuidado. As precauções mantêm-se ao rodar a chave da sua fechadura e ao entrar em sua casa, onde os filhos, de dez e 16 anos, passam os dias. “Não estamos afastados, mas é diferente. Tenho mais cuidado e, quando chego a casa, desinfeto as mãos”, diz, explicando que não há “tantos abraços”.
As demonstrações de afeto, que hoje têm de ser cuidadosamente pensadas, não mudaram apenas nesta casa. Nas travessas da Bica há quem mantenha o afeto entre quatro paredes e não abra sequer a porta para receber as encomendas feitas.
“Meta na porta”, foi uma das frases que esta carteira já chegou a ouvir. Mas há também quem não abandone os hábitos antigos e, à sua passagem, deixe as portas escancaradas. “As pessoas mais idosas é exatamente o contrário. Querem-nos à porta. Querem conversar”, conta, explicando que esta é uma questão intemporal. “Só aos fins de semana é que veem os familiares, e então, no dia-a-dia, apanham o carteiro para desabafar”, diz, confessando que “é essa parte” que adora no seu trabalho.
Na última semana, por exemplo, uma mulher esperava-a “ao fundo das suas escadas” e pediu-lhe um abraço. “Agora não pode ser”, foi o que lhe respondeu Carla. Há dois meses, o encontro teria sido diferente e o abraço não teria ficado por distribuir.
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