Temos de travar já as bombas-relógio dentro dos nossos lares.
As imagens que nos chegam dos lares espanhóis são horrendas. Idosos a conviver com cadáveres, mortos e vivos abandonados à sua sorte. Isto não é aceitável numa sociedade civilizada. Mas são o desespero e a desumanidade e o medo nas suas formas concretas.
Em Portugal, também já perdemos muitas vidas nos lares e casas de repouso. Temo que o pior ainda esteja para vir. Se não atuarmos, e se não atuarmos já, seremos todos cúmplices na transformação de lares de idosos em corredores da morte. Por dever moral, por solidariedade intergeracional, por humanidade, porque estas pessoas não são números mas são gente com vidas e com histórias, é-nos exigida ação rápida e firme. Porque são os nossos pais e os nossos avós.
A situação é esta: praticamente na exaustão, o SNS está a mandar para casa todos os infetados com covid-19 que não apresentem quadros clínicos graves. O que em tese é, diga-se, absolutamente aceitável. O problema é que muitas altas são passadas a idosos que estão institucionalizados. O corolário é simples: idosos infetados estão a ser mandados para os seus lares pelo próprio Serviço Nacional de Saúde, fazendo destas instituições verdadeiras bombas biológicas. Se um idoso faz parte do grupo de risco, um idoso infetado num lar aumenta o índice de risco múltiplas vezes.
O quadro é muito critico. E não é de hoje. Há apenas quatro anos, um estudo da União das Misericórdias Portuguesas fazia um retrato muito preocupante da população dos lares. Este grupo tem, em média, uma idade superior a 85 anos e múltiplas patologias, incluindo doenças crónicas. Oitenta e cinco por cento destas pessoas são totalmente dependentes, até para as atividades mais rotineiras do dia-a-dia (higiene e alimentação). A 50% tinha sido diagnosticada demência.
Este estudo, apresentado ao Ministério da Saúde, não foi suficiente para a tutela alterar a classificação dos lares que, deixados na área social, continuam a ser encarados apenas e só como estruturas residenciais. A verdade, pelos dados, é que já não o são: o prolongamento da esperança de vida e a incidência de doenças crónicas faz dos lares, crescentemente, unidades com necessidades especiais de saúde que ora são supridas pelos médicos de família dos utentes, ora são debeladas por corpo médico interno nas instituições de maior dimensão.
Com o SNS a operar no limite, o problema de saúde pública passou para o lado do Ministério da Solidariedade Social que, naturalmente, não está capacitado para lidar com um problema desta escala. Em vez de estarem a isolar os idosos, as autoridades de saúde estão a promover a contaminação grupal de grupos de risco. Dizer que os lares podem criar áreas para covid positivo e covid negativo como medidas de contingência é tentar comprar uma boa consciência. Muitos deles não têm sequer material de proteção individual. E, de um dia para o outro, é impossível transformar lares em residências medicalizadas, capazes de lidar com as circunstâncias da evolução aguda da pandemia.
Pelo que tenho testemunhado em Cascais, e sei que é esse também o retrato um pouco por todo o país, a situação só não é mais dramática porque, ao contrário do que acontece noutros lugares, nos nossos lares ninguém abandonou os seus utentes. Há pessoal, os chamados “auxiliares”, que estão a dar tudo por tudo, 24 horas por dia e sete dias por semana, para prestar todos os cuidados aos seus idosos. Mas por mais boa vontade que tenham, e têm muita, por mais coragem que tenham, e têm muita, estas pessoas não têm formação médica e não podem prestar cuidados necessários a um idoso, dependente, infetado com o coronavírus.
Qual é a solução? A resposta passa, desde logo, por uma melhor articulação entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Segurança Social e as autarquias. As câmaras são parceiros imprescindíveis na resolução deste gravíssimo problema de saúde pública.
Tenho estado em contacto com a Associação Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e o seu presidente sabe que, em Cascais, temos prontas a usar pelo menos 220 camas para idosos infetados. A Cercica, originalmente concebida para ser residência assistida a pessoas com deficiência, está transformada num Centro de Testes à Covid-19, nas suas áreas sociais, e toda a zona residencial, com 110 camas e mais de 50 quartos, está agora ao dispor do SNS para “internar” os idosos infetados. Temos ainda, nas mesmas circunstâncias, uma outra instalação do CRID com mais 110 camas.
Não podemos ter infetados dentro dos lares.
Resolvida a questão da infraestrutura, resta a de pessoal: são precisos médicos para cuidar dos idosos. Cascais não hesitou e vai avançar para a contratação de médicos e enfermeiros. Contudo, não pode ser uma autarquia a responsabilizar-se pela política de saúde. As autoridades nacionais de saúde têm de, pelo menos, indicar uma chefia médica que defina tão complexa operação de saúde e assuma a responsabilidade.
Este é um modelo que pode ser replicado por todo o país. É do melhor interesse de todos que tudo se faça para salvarmos os nossos idosos.
Este não é tempo para a burocracia ou para o zelo egocêntrico da máquina político-administrativa. Este é um tempo de urgência. Estamos em contrarrelógio para salvar vidas dos nossos idosos.
Mas há esperança. Conseguimos agilizar a coordenação do Hospital de Cascais com a ARS através do ACES e, muito provavelmente, quando estiver a ler este texto, a resposta já vai estar operacional – porque será muito grave se não estiver.
Tenhamos todos a consciência do seguinte: podemos derrotar o coronavírus e ganhar a guerra no presente, mas nunca teremos futuro se deixarmos para trás os nossos pais e avós, se abandonarmos os que fizeram de nós aquilo que somos, como indivíduos e como nação.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira