Ninguém é dispensável

Ninguém é dispensável


Ficamos em casa porque não queremos que ninguém fique sem assistência.


Em tempos ouvi dizer que “somos a geração dos que ficaram”, evocando o tempo em que se partia para o mar em busca de novas terras. Porém, até para ficar é preciso ter coragem. Foi preciso surgir uma pandemia para que Portugal mostrasse uma vez mais o que vale.

Julgava que o único ato verdadeiramente democrático, ao qual se aplicava em rigor a palavra igualdade, era o momento do voto. Rico ou pobre, presidente ou operário, cada voto vale por um. Uma pessoa, um voto. Perante a pandemia que atravessamos, podemos afirmar que está ainda em vigor um outro sentido democrático e igualitário pois, até à data, seja quem for que se apresente doente é tratado sem discriminação, tenha oito ou 80. Talvez seja exatamente por esta razão que estamos a fazer todo o esforço para parar e ficar em casa. O número de infetados, já sabemos que será elevado, mas pretendemos não provocar o caos nos hospitais porque não queremos que ninguém fique sem assistência. Os nossos velhinhos não podem ser tratados à semelhança do que acontece noutros países, onde quem tiver mais de 80 anos simplesmente não é socorrido. O esforço que fazemos tem o fim de salvar o maior número de pessoas. Sim, pessoas, mais novas e mais velhas. Aprendemos a crescer numa sociedade onde, na generalidade, na mesma casa vivem apenas os pais e os filhos. Os avós, enquanto tiverem saúde, vivem na sua casa e, depois, por culpa do tempo ou do trabalho, acabam numa espécie de depósito da terceira idade, pois não cabem lá em casa. Não me estenderei sobre o assunto porque espero um dia vir a fazê-lo.

Ontem, o general António Ramalho Eanes prestou um excelente testemunho sobre a situação atual. Reconhecendo que é fácil falar das decisões depois de tomadas, não deixou de apresentar o seu ponto de vista e de contribuir com algumas ideias. Poucas vezes escutamos e vemos na televisão alguém comentar de forma tão clara, isenta e sóbria assuntos tão difíceis e delicados. Talvez porque lhe pediram para falar do que sabe. A analogia que estabeleceu entre frentes de combate e a estratégia para travar a pandemia ajudou a que qualquer de nós o entendesse. Segundo ele, na primeira linha não deveriam estar os médicos, mas sim os políticos e os órgãos decisores. À semelhança dos tempos em que serviu a pátria e teve de tomar decisões de vida ou morte, definiu um plano, estabeleceu diretrizes e ainda nos falou sobre o que é o amor. Ocorre-me imaginar que Ramalho Eanes viesse a contrair esta doença necessitando de cuidados intensivos e, pela idade, estes lhe fossem negados. Seria uma injustiça, ninguém discordará. Não pelas funções que desempenhou ou desempenha, mas porque é um ser humano. Em salvar vidas reside a razão da missão de qualquer médico. Por isso é importante que façamos o que está ao nosso alcance para salvar quem quer que seja. Perder o general Ramalho Eanes seria perder alguém de grande valor porque, em última análise, ninguém é dispensável.

 

Professor e investigador