Nas últimas duas semanas, Maria da Conceição António tem desligado o telemóvel quando chega a hora do jantar. Apesar de, ao longo do dia, ir recebendo algumas chamadas, é ao anoitecer que os clientes que querem visitar o bar La Siesta, no Vale de Santarém, se tornam mais, e mais insistentes: “É todos os dias. Isto é de chorar a rir porque é a toda à hora. Tenho de desligar o telefone porque é à noite que é mais complicado”, explica a empresária, mais conhecida por Kikas, dona de uma casa de prostituição que encerrou o seu espaço a 12 de março.
A sul, a proprietária do Espaço Lisboa tomava a mesma decisão e a 17 de março, um dia antes de Marcelo Rebelo de Sousa ter declarado o estado de emergência, fechou as portas. “Primeiro, tentámos as medidas de controlo de contágio, mas comecei a ver que não era suficiente”, conta ao i Ana Loureiro, explicando que, antes de encerrar, a temperatura dos clientes era medida à entrada e “as mãos e faces dos clientes” desinfetadas. Também nesta casa na zona da Grande Lisboa os telefones foram desligados, mas os números de reencaminhamento ajudam a perceber que a procura de prostitutas e acompanhantes de luxo não diminuiu com a entrada em vigor do estado de emergência. Ao i, a proprietária do espaço revela que, dias antes de fechar as portas, “havia muita procura”. “Encerrei o espaço com uma movimentação mais acentuada. Parecia que o mundo ia acabar”, afirma.
As portas fechadas aos clientes e as chamadas não atendidas não parecem ser, no entanto, a solução para diminuir esta procura – até porque a oferta não deixa de existir, seja nas páginas de alguns jornais, seja nos sites que oferecem exclusivamente estes serviços. “Todas elas ganham, todas elas podiam descontar, todas elas poderiam estar tranquilamente em casa”, afirma, explicando que estas mulheres vão trabalhar por não terem comida para pôr na mesa. “Estas raparigas recebem ao dia. Nem todos os dias trabalham. Não trabalham na segunda-feira, mas trabalham na terça. Se conseguirem fazer dois clientes, compensa-lhes para a segunda que não trabalham. Neste caso, elas vão para casa e não recebem nada”.
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Ao i, Ana Loureiro explica que é “aqui que se vai dar o grande problema” porque “estas raparigas não aguentam uma semana em casa”. A proprietário do Espaço Lisboa, que é também a responsável pela petição pública pela legalização da prostituição em Portugal, deixou de pagar a renda para ajudar as colaboradoras que trabalham consigo. Pediu às cerca de 30 mulheres para ficarem em casa e se protegerem, mas sabe, porque também está em contacto com outras trabalhadoras, que “o que continua a acontecer é que as pessoas continuam a trabalhar”.
Anúncios que não param de aparecer Apesar do telefone desligado, Ana Loureiro optou por não retirar o anúncio da sua casa do Classificados X, um dos sites que se dedica exclusivamente a anunciar a prestação de serviços sexuais. Além de o anúncio já estar pago, acha que o site não deveria sair prejudicado, uma vez que o banner – anúncio próprio para as casas – já não se encontra visível nas primeiras páginas do mesmo, onde durante o dia – ou a noite – é possível confirmar que há procura. Ana Loureiro reforça ainda que a procura existente “não é por parte dos classificados”, já que foi feita uma proposta em que o Classificados X se comprometia não só a devolver os pontos utilizados pelos clientes do site para fazer subir os anúncios como ainda oferecia pontos extra. Quem aceitou pode, gratuitamente e “quando tudo voltar ao normal”, fazer o seu anúncio subir 18 vezes”. “Estas raparigas não tinham necessidade porque o Classificados é o primeiro a pedir para elas não anunciarem. Não é culpa do site porque o site propôs todas as condições para as raparigas pararem de anunciar”, explica.
A cada hora que passa há cerca de 30 anúncios a “serem subidos”. Os novos números de telefones e propostas não significam que os anúncios estejam a ser colocados na hora, mas sim que quem os coloca lá está a pagar para que estes sejam os primeiros a aparecer a cada visitante da página. Feitas as contas, são centenas de anunciantes que, por dia, pagam para ver as suas propostas no topo. “Para estarem a ser subidos é porque têm procura. Senão, a rapariga não vai pagar para os subir”, garante Ana Loureiro, explicando que são precisos, no mínimo, cinco euros para fazer subir anúncios. “Se fumar, dá-lhe para um maço de tabaco. Se não fumar, dá-lhe para uma refeição fora. Se não comer fora, dá-lhe para fazer uma panela de sopa e uma refeição. Nenhuma rapariga no seu pleno estado de saúde mental vai subir um anúncio se não tiver procura. Ela gasta cinco euros porque sabe que vai receber, no mínimo, 20. Compensa-lhe”, garante.
Ao i, explica ainda que também os preços são um sinal do “desespero” por que estas mulheres vão e já estão a passar. No Espaço Lisboa, Ana não cobra menos de 60 euros, mas explica que, a nível individual, nenhuma mulher portuguesa aceita, em média, menos de 40 euros. “Houve um arrebatamento a nível dos preços na prostituição que as pessoas não têm a noção”, garante ao i.
No Classificados X e nas páginas de jornais, a maior parte dos anúncios é acessível a quem tenha duas notas azuis na carteira – havendo quem ainda consiga receber troco – e o preço não varia muito com as propostas. Há quem anuncie sozinha, em dupla, e ainda quem faça deslocações. Ana Loureiro explica que, em Lisboa, as deslocações nunca custam menos de 150 euros, durante o dia. Quando anoitece, o preço sobe para 250 euros. “É o desespero” e a “fome”, insiste a empresária, garantindo que, se não fosse esta a razão pela qual as prostitutas vão continuar a trabalhar, “subiriam os preços”. “Isto é o desespero de quem não tem o que comer”, garante, recordando que também foi por não ter o que dar de comer aos filhos que entrou na prostituição. Colocando-se no lugar destas mulheres, onde já esteve há 12 anos, explica que “a única forma de matar a minha fome é baixar o meu preço para 20 euros e esperar que alguém pegue em mim”.
Petição em tempo “útil” Foi a pensar nestas mulheres que Ana Loureiro tentou entrar em contacto com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. “Ainda que de forma desagradável à sociedade, esta pandemia decorre em tempo útil à petição”, afirma. O documento da sua autoria, que conseguiu este mês recolher as 4 mil assinaturas necessárias para ser discutido em plenário, prevê algumas limitações à atividade como, por exemplo, uma idade mínima, a legalização das casas ou uma maior fiscalização por parte das autoridades, de forma que as limitações de idade sejam cumpridas – tanto nas casas como nos anúncios online e em papel, onde, segundo Ana Loureiro, muitos não chegam a pedir o cartão de cidadão para confirmar.
“Já fiz três trocas de requerimento a solicitar que me fossem cedidas diretrizes em relação às profissionais do sexo”, conta Ana Loureiro. Nos emails enviados à Secretaria-Geral da Presidência da República, ao gabinete do primeiro-ministro e ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, deixou uma proposta. Sabendo que não podem “ser contempladas as milhares de trabalhadoras”, propõe que “pelo menos as raparigas que são mães e não estão a trabalhar” possam receber “um abono, uma majoração”, à semelhança do que aconteceu com a monoparentalidade.
“Não digo que isto seja uma coisa eterna”, defende, acrescentando que 300 euros bastavam para as “raparigas permanecerem em casa”. Apesar de Belém e o gabinete do primeiro-ministro lhe terem respondido, os emails foram remetidos para o ministério tutelado por Ana Catarina Mendes. “De lá, eu não recebo nenhuma resposta”, garante, afirmando que ninguém está preocupado com as prostitutas, “mas a realidade é que é esta classe com que eles não se preocupam que vai dar muito problema”.
De portas fechadas Não é à toa que as colaboradoras de Maria da Conceição António a tratam por mãe Kikas. “É da minha responsabilidade agora dar-lhes o comer e todas as condições”, afirma a empresária, que deu a escolher a todas as mulheres que trabalham consigo se queriam ficar na residencial ou ir para casa. Cerca de metade decidiram ficar no Vale de Santarém, onde têm espaço para “ver flores, ir às laranjas e aos limões”. “Não saem para a rua e conseguiram entender que aqui têm muito espaço”, algo que as colegas não têm nos apartamentos onde decidiram fazer a quarentena. Além de conviverem e terem alguém que lhes faça o jantar, estas mulheres aproveitam os seus dias para treinar os espetáculos, ir ao ginásio ou frequentar a piscina interior que existe na residencial.
“Estamos muito bem, tendo em conta as notícias. Depois de amanhã fazemos duas semanas de quarentena. Temos situações de meninas que não tinham possibilidades de estar sozinhas em casa”, explica uma das colaboradoras que estão na residencial, acrescentando ainda que só não está na casa quem não quer, pois Kikas disponibilizou o espaço a todas as suas colaboradoras. Ao i, Anabela explica que as rotinas mudaram por completo. “Torna-se muito mais saudável, por um lado, e mais prejudicial pelo outro, porque não ganhamos”, afirma, explicando que durante este período se têm concentrado mais nelas próprias.
Apesar de estarem separadas de metade das colegas, têm mantido o contacto umas com as outras. “Algumas pedem-me para voltar, mas como nós temos de ter muito cuidado, e por muito que me custe, tenho de dizer que não”, explica Kikas, garantindo que dentro da casa há a salvaguarda de que ninguém está doente, já que foram feitos testes.
Ágata foi uma das colaboradoras que apresentaram resultados negativos no teste da covid-19. Na semana anterior a fechar, a colaboradora sul-africana diz ter “exagerado” durante as suas folgas. “Brinquei e não dormi”, afirma, explicando que começou por ter febre. “Tive medo de dormir e não acordar”, e ligou à empresária. Depois disso foi de táxi até ao hospital, onde lhe fizeram a despistagem.
Mas não é só com as colegas que estas mulheres falam. Falam com as famílias, de quem estão longe. Há familiares em Portugal, mas também espalhados pelo mundo. Anabela garante que as chamadas de vídeo e WhatsApp e a constante troca de fotografias ajudam a encurtar a distância. Mas há distâncias que só podem ser encurtadas com viagens e pedidos que não se conseguem recusar. É o caso de Caprine, uma das colaboradoras, que esta semana saiu da residencial com destino a Fortaleza. Apesar das dúvidas e do processo de legalização que vai deitar ao chão, a brasileira decidiu ir. “A minha mãe ligou direto e eu acabei por decidir ir”, explica, afirmando que é preciso “pensar positivo, senão entra todo o mundo em pânico”.
Apesar de colocar o bem-estar em primeiro lugar, Kikas garante que “não está a ser fácil” lidar com tudo isto.
Com as colaboradoras que albergou a custo zero, está a ser complicado, mas Kikas garante que vai dando “um bom apoio psicológico”. É com as que decidiram passar a quarentena nas suas casas que está mais preocupada. “São pessoas que estão habituadas ao “convívio, alegria, a comunicar”. “Só não tinham liberdade quando estavam a dormir”, garante. As que decidiram ficar em apartamentos por todo o país “estão fechadas no meio de quatro paredes e veem estas felizes, a rir, a ir ao ginásio”. Apesar de longe, Kikas garante que todos os dias lhes telefona para saber como estão e se precisam de comida. “Digo-lhes que não podem sair de casa ainda”, acrescenta.
A residencial está a meio gás e o dinheiro não entra nem sai. Quando as portas estão abertas, cobra 30 euros em troca de cama, comida e gastos. O que ganham, fica na totalidade para as colaboradoras. Antes de fechar as portas, admite que pensou em cobrar dez euros “para os gastos”, mas rapidamente a ideia saiu porta fora. “Não tive coragem”, explica.