Madrugada fora o músico sai, e tem as ruas para o ricochete de abafadas sugestões de melodia, a noite é toda ouvidos, e ele põe nos passos um ritmo, demora-se ali, compõe no modo de pisar a calçada, a ver se lhe sobe da raiz às ideias a composição de um fado. Carlos Gonçalves contou como Lisboa ajudava, como ela mesma tinha ideias de arranjos, como foi que, juntos, compuseram Lágrima. “Eu tinha saído da casa de fados do João Braga, pelas três da manhã e no caminho fui sendo assaltado pela melodia. Cheguei a casa e passei-a pelo telefone à Amália. Fora de série, ela logo fez um rascunho e daí por uns dias já tinha a letra”. Este testemunho recolhido pelo Museu do Fado é usado para ilustrar a técnica e sensibilidade de Gonçalves, que acompanhou a deusa ao longo de três décadas, não só na guitarra, ao vivo, mas dando esse corpo melódico aos poemas da fadista. Carlos Gonçalves, que morreu na segunda-feira, aos 81 anos, fazia do seu instrumento um modo de enaltecer o verso, ora amparando ora espicaçando, a sua guitarra cosia à linha, e ele bordava discretamente as harmonias. Como nos diz a Enciclopédia de Música em Portugal no Século XX, enquanto acompanhador, o guitarrista “complementava a melodia principal desenhada pela voz, através de um suporte harmónico em acordes ou harpejos, figurações melódicas e contracantos padronizados”. O seu nome entretece-se, assim, à lenda do próprio Fado, pelas tantas composições onde seguiu os versos de Amália ou quando foi em si que despontou o primeiro impulso. Além de Lágrima, ajudou a criar outros fados que ninguém esquece como Grito, Amor de Mel, Amor de Fel, Sou Filha das Ervas, Ó Pinheiro Meu Irmão, Ai, Maria, Ai, Minha Doce Loucura ou Lavava, no rio Lavava. Por isso, a Encicolpédia aponta-o justamente como “um dos mais destacados intérpretes do fado da sua geração”. E, de resto, além de Amália, acompanhou Alfredo Marceneiro, Maria Teresa de Noronha, Filipe Pinto, Lucília do Carmo, Argentina Santos, Fernando Maurício, Fernando Farinha, Fernanda Maria, Beatriz da Conceição, Ada de Castro, Anita Guerreiro, Julieta Estrela e Manuela Cavaco, entre outros.
Carlos dos Santos Gonçalves, nasceu em Beja, no dia 3 de Junho de 1938, e começou a tocar guitarra influenciado pelo pai, que tocava bandolim, por José Nunes e Raul Nery, suas referências fundamentais, apesar de no início da sua aprendizagem ter tocado clarinete na Banda Capricho, em Beja. Tendo iniciado a carreira em 1957 actuando em várias casas de fado, entre elas a Adega da Anita, Clube de Fado ou o Fado Maior, só uma década mais tarde, em 1969, iniciou a colaboração com Amália, então ainda com José Fontes Rocha (1926-2011), como primeira guitarra. Tornou-se principal guitarra a partir de 1980, tendo-a acompanhado em todas as suas digressões. Na década de 1990, dedicou-se ao ensino da guitarra portuguesa a jovens músicos, como Paulo Silva ou Bernardo Couto. E a ministra da Cultura, Graça Fonseca, na sua nota de pesar em reacção à morte do músico destacou precisamente esta dimensão pedagógica, que surge "num prolongamento da sua extensa e brilhante carreira, tendo Carlos Gonçalvs orientado vários jovens guitarristas como professor de guitarra portuguesa". Em 2004, o guitarrista apresentou pela primeira vez o lançamento de um álbum a solo, A Essência da Guitarra Portuguesa, onde se destacam algumas das suas melhores composições, por exemplo, O Meu Sentir e Abril em Portugal.