Lei na selva


Todas as evidências demonstram que a regulação afasta do mercado os maus produtos e as empresas pouco sérias, promovendo a concorrência leal e a proteção do consumidor. Na selva, não há como dispensar a lei.


Uma das missões mais importantes que confiamos a quem nos governa é a de garantir a qualidade dos medicamentos e alimentos que consumimos. Mas nem sempre assim foi. De facto, a atividade de regulação das empresas/produtos alimentares e farmacêuticos na forma como a conhecemos é relativamente recente. Apesar do enorme impacto positivo desta regulação nas nossas vidas, alguns aspetos continuam ainda a ser vistos por alguns como excessivos e bloqueadores do desenvolvimento e iniciativas empresariais. Pelo contrário, o que a evidência histórica demonstra é que a regulação é um motor de inovação que desempenha um papel crucial na proteção do consumidor. A esse título, é interessante revisitar as origens da Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora americana que é considerada hoje uma referência mundial na área.

A industrialização e a urbanização da América na transição dos sécs. xix para xx causaram alterações profundas na sociedade. Desde logo, os movimentos de massas em direção às cidades obrigaram a um reajuste violento no modo de vida americano. Cidadãos que outrora produziam os próprios alimentos nas suas terras passaram a depender de cadeias de distribuição/venda que pouca atenção prestavam à qualidade dos produtos que comercializavam. As empresas eram vistas como motores de progresso formidáveis e a regulação do comércio ou a proteção estatal dos consumidores era inexistente. A total ausência de controlo favorecia a corrupção e as empresas menos escrupulosas, e em particular as que comercializavam alimentos e medicamentos [1].

Muitos empresários usavam produtos químicos indiscriminadamente de modo a mascarar e alterar a aparência, cheiro e sabor de alimentos degradados. A adição de ingredientes baratos era uma forma comum de adulterar alimentos e assim aumentar o lucro. O efeito destes produtos na saúde não era testado, não existiam etiquetas nos alimentos e a origem ou composição dos aditivos era ignorada. Na medicina abundavam os produtos fraudulentos comercializados por charlatões. Os medicamentos ditos “patenteados” continham ingredientes secretos que em geral não tinham valor terapêutico ou eram mesmo perigosos. A maioria era vendida utilizando estratégias de marketing agressivas que propagandeavam infundadamente que teriam curado alguém, algures. Os elixires e panaceias milagrosas que tratavam tudo do cancro ao reumatismo, passando pela sífilis e a gota, eram verdadeiros campeões de vendas. Para além de colocarem em risco a saúde pública, estas práticas desleais ameaçavam as empresas empenhadas em fornecer alimentos e medicamentos de qualidade. Não por acaso, os líderes empresariais daquela que é considerada uma das eras mais vergonhosas da história americana eram conhecidos como os “barões ladrões” [1].

Os problemas causados pela industrialização, urbanização e corrupção durante o período 1890-1920 originaram um ativismo social imparável que pugnava por reformas que “civilizassem o capitalismo” [1]. Os defensores deste movimento progressista, com o Presidente Theodore Roosevelt e empresários legítimos à cabeça, afirmavam que o policiamento das empresas deveria ser um dever do Governo. Em particular, o completo descontrolo da comercialização de alimentos e medicamentos originou verdadeiras cruzadas por leis mais severas. Mas este movimento deparou-se com lóbis político-empresariais poderosos e malhas de corrupção que obstruíam as tentativas legislativas de regulação, argumentando com a sua inconstitucionalidade e considerando-as inimigas do progresso.

O fiel desta balança acabaria por pender decisivamente para o lado progressista em resultado da publicação, em 1906, de uma novela da autoria de Upton Sinclair. Escrita com o objetivo de promover o socialismo na América, A Selva retratava a vida dura, o desalento e a exploração dos imigrantes que em Chicago laboravam nos matadouros e na embalagem de carne. Mas mais do que as ideias socialistas, o que verdadeiramente prendeu os leitores foi a narrativa gráfica da completa insalubridade daquela atividade. A descrição de trabalhadores tuberculosos a arrastar carcaças por chãos imundos, de peças de carne cobertas de excrementos de ratos e as insinuações de que operários caídos em tanques se tornavam parte da carne enlatada atingiram em cheio a opinião pública. A confirmação oficial da total ausência de condições sanitárias provocou uma queda violenta nas vendas de carne e um clamor generalizado que forçou o poder político a agir. A Lei dos Alimentos e Medicamentos foi, assim, finalmente publicada em 1906, criando a Food and Drug Administration. Desde então, mais de 40 leis foram publicadas que têm reforçado progressivamente o poder da FDA.

A missão atual da FDA e de agências congéneres noutros países (e.g., o Infarmed e a ASAE em Portugal) passa por garantir a segurança e eficácia de medicamentos e dispositivos médicos e a segurança de alimentos, cosméticos e tabaco, entre outros. A recolha e a produção de evidência empírica com base em métodos científicos modernos constituem um dos pilares desta vigilância. Por exemplo, a aprovação de novos medicamentos só é hoje possível se assente num estudo experimental rigoroso, envolvendo testes em animais e humanos, que demonstre com elevado grau de confiança que são eficazes e seguros. Infelizmente, a execução desses ensaios requer tempo, impedindo uma entrada mais imediata no mercado de produtos inovadores ou urgentemente necessários. Porém, todas as evidências demonstram que a regulação afasta do mercado os maus produtos e as empresas pouco sérias, promovendo a concorrência leal e a proteção do consumidor. Na selva, não há como dispensar a lei.

[1] Hilts, P. J. (2019) Protecting America’s Health, Chapel Hill, 2003.

 

Professor do Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt


Lei na selva


Todas as evidências demonstram que a regulação afasta do mercado os maus produtos e as empresas pouco sérias, promovendo a concorrência leal e a proteção do consumidor. Na selva, não há como dispensar a lei.


Uma das missões mais importantes que confiamos a quem nos governa é a de garantir a qualidade dos medicamentos e alimentos que consumimos. Mas nem sempre assim foi. De facto, a atividade de regulação das empresas/produtos alimentares e farmacêuticos na forma como a conhecemos é relativamente recente. Apesar do enorme impacto positivo desta regulação nas nossas vidas, alguns aspetos continuam ainda a ser vistos por alguns como excessivos e bloqueadores do desenvolvimento e iniciativas empresariais. Pelo contrário, o que a evidência histórica demonstra é que a regulação é um motor de inovação que desempenha um papel crucial na proteção do consumidor. A esse título, é interessante revisitar as origens da Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora americana que é considerada hoje uma referência mundial na área.

A industrialização e a urbanização da América na transição dos sécs. xix para xx causaram alterações profundas na sociedade. Desde logo, os movimentos de massas em direção às cidades obrigaram a um reajuste violento no modo de vida americano. Cidadãos que outrora produziam os próprios alimentos nas suas terras passaram a depender de cadeias de distribuição/venda que pouca atenção prestavam à qualidade dos produtos que comercializavam. As empresas eram vistas como motores de progresso formidáveis e a regulação do comércio ou a proteção estatal dos consumidores era inexistente. A total ausência de controlo favorecia a corrupção e as empresas menos escrupulosas, e em particular as que comercializavam alimentos e medicamentos [1].

Muitos empresários usavam produtos químicos indiscriminadamente de modo a mascarar e alterar a aparência, cheiro e sabor de alimentos degradados. A adição de ingredientes baratos era uma forma comum de adulterar alimentos e assim aumentar o lucro. O efeito destes produtos na saúde não era testado, não existiam etiquetas nos alimentos e a origem ou composição dos aditivos era ignorada. Na medicina abundavam os produtos fraudulentos comercializados por charlatões. Os medicamentos ditos “patenteados” continham ingredientes secretos que em geral não tinham valor terapêutico ou eram mesmo perigosos. A maioria era vendida utilizando estratégias de marketing agressivas que propagandeavam infundadamente que teriam curado alguém, algures. Os elixires e panaceias milagrosas que tratavam tudo do cancro ao reumatismo, passando pela sífilis e a gota, eram verdadeiros campeões de vendas. Para além de colocarem em risco a saúde pública, estas práticas desleais ameaçavam as empresas empenhadas em fornecer alimentos e medicamentos de qualidade. Não por acaso, os líderes empresariais daquela que é considerada uma das eras mais vergonhosas da história americana eram conhecidos como os “barões ladrões” [1].

Os problemas causados pela industrialização, urbanização e corrupção durante o período 1890-1920 originaram um ativismo social imparável que pugnava por reformas que “civilizassem o capitalismo” [1]. Os defensores deste movimento progressista, com o Presidente Theodore Roosevelt e empresários legítimos à cabeça, afirmavam que o policiamento das empresas deveria ser um dever do Governo. Em particular, o completo descontrolo da comercialização de alimentos e medicamentos originou verdadeiras cruzadas por leis mais severas. Mas este movimento deparou-se com lóbis político-empresariais poderosos e malhas de corrupção que obstruíam as tentativas legislativas de regulação, argumentando com a sua inconstitucionalidade e considerando-as inimigas do progresso.

O fiel desta balança acabaria por pender decisivamente para o lado progressista em resultado da publicação, em 1906, de uma novela da autoria de Upton Sinclair. Escrita com o objetivo de promover o socialismo na América, A Selva retratava a vida dura, o desalento e a exploração dos imigrantes que em Chicago laboravam nos matadouros e na embalagem de carne. Mas mais do que as ideias socialistas, o que verdadeiramente prendeu os leitores foi a narrativa gráfica da completa insalubridade daquela atividade. A descrição de trabalhadores tuberculosos a arrastar carcaças por chãos imundos, de peças de carne cobertas de excrementos de ratos e as insinuações de que operários caídos em tanques se tornavam parte da carne enlatada atingiram em cheio a opinião pública. A confirmação oficial da total ausência de condições sanitárias provocou uma queda violenta nas vendas de carne e um clamor generalizado que forçou o poder político a agir. A Lei dos Alimentos e Medicamentos foi, assim, finalmente publicada em 1906, criando a Food and Drug Administration. Desde então, mais de 40 leis foram publicadas que têm reforçado progressivamente o poder da FDA.

A missão atual da FDA e de agências congéneres noutros países (e.g., o Infarmed e a ASAE em Portugal) passa por garantir a segurança e eficácia de medicamentos e dispositivos médicos e a segurança de alimentos, cosméticos e tabaco, entre outros. A recolha e a produção de evidência empírica com base em métodos científicos modernos constituem um dos pilares desta vigilância. Por exemplo, a aprovação de novos medicamentos só é hoje possível se assente num estudo experimental rigoroso, envolvendo testes em animais e humanos, que demonstre com elevado grau de confiança que são eficazes e seguros. Infelizmente, a execução desses ensaios requer tempo, impedindo uma entrada mais imediata no mercado de produtos inovadores ou urgentemente necessários. Porém, todas as evidências demonstram que a regulação afasta do mercado os maus produtos e as empresas pouco sérias, promovendo a concorrência leal e a proteção do consumidor. Na selva, não há como dispensar a lei.

[1] Hilts, P. J. (2019) Protecting America’s Health, Chapel Hill, 2003.

 

Professor do Instituto Superior Técnico

miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt