A contar histórias se transmite o conhecimento de geração em geração. Por vezes à volta da fogueira, junto ao mar ou numa sombra, muito do que hoje se lê passou primeiro de boca em boca, com tudo o que isso implica num processo de transformação, até chegar à escrita. Nessas histórias é frequente encontrar animais a falar e agir como os humanos, mas engana-se aquele que julga ser esta uma invenção de agora. São exemplo Esopo, La Fontaine e o Padre António Vieira, autores que deixaram verdadeiros tesouros encerrados em narrativas simples para adultos com uma linguagem por vezes infantil.
Encontrei recentemente no sótão um livro que julgava perdido. O título é O Triunfo dos Porcos, de George Orwell. A história passa-se numa quinta onde um velho porco, antes de morrer, incita todos os animais a preparar uma revolta para se libertarem da opressão dos humanos e criarem um governo mais justo, honesto e igualitário. A revolta é liderada pelos porcos Bola de Neve e Napoleão que, depois de expulsos os humanos, fixam para sempre sete mandamentos: 1 – Qualquer coisa que ande em duas pernas é inimigo; 2 – Qualquer coisa que ande sobre quatro patas ou tenha asas é amigo; 3 – Nenhum animal usará roupas; 4 – Nenhum animal dormirá em cama; 5 – Nenhum animal beberá álcool; 6 – Nenhum animal matará outro animal; 7 – Todos os animais são iguais. Se a história acabasse assim poder-se-ia dizer: “E viveram felizes para sempre!”
Na visão antropológica do homem a partir da Bíblia, e na qual estamos enraizados, somos os descendentes de Caim. Por outras palavras, transportamos no nosso ADN a memória genética do filho de Adão e Eva que matou o próprio irmão por inveja. Definimos a humanidade pelas suas fraquezas, que é, aliás, o caminho mais comum no pensamento humano. Imperfeitos, limitados, pecadores… Mas, afinal, quem somos e para onde vamos? Educamos as nossas crianças para que sejam o futuro da humanidade e para isso mostramos-lhes que caminhos não devem seguir. Em contrapartida, que caminhos percorremos lado a lado com eles no presente? É que o futuro começa hoje! A mudança dói, é um facto, mas é uma dor libertadora. Mudar não é só assumir a nossa fraqueza ou fragilidade, é transformar radicalmente o paradigma em que vivemos. Mas quem nos lidera é a voz da nossa consciência ou a voz dos porcos que por aí andam? É que o porco Bola de Neve governou a quinta com bravura e justiça por pouco tempo. Napoleão traiu-o. Obrigou-o a desaparecer para sempre mentindo e acusando-o de ser um traidor. Cego pelo poder, o porco Napoleão transforma a democracia numa ditadura ainda mais corrupta do que era no tempo dos homens. E, para completar, muda também as leis a seu jeito. Eis o que mudou: 4 – Nenhum animal dormirá em cama (com lençóis); 5 – Nenhum animal beberá álcool (em excesso); 6 – Nenhum animal matará outro animal (sem motivo); 7 – Todos os animais são iguais (mas alguns são mais iguais que os outros). Porque há porcos e porcos, quem tiver ouvidos que oiça!
Professor e investigador