Portugal não mata, cuida


Até que ponto poderemos obrigar os profissionais de saúde a eutanasiar um doente? Mesmo que a lei lhe confira essa possibilidade e que o mesmo a solicite?


Estamos em Portugal e, portanto, a noção das prioridades é sempre pouca, quando não mesmo inexistente. Esta semana, os políticos, os meios de comunicação social, as redes sociais e, por consequência, a sociedade civil foram invadidos por debates na sua maioria estéreis e que só tiveram um propósito: fazer, uma vez mais, passar o importante pelos pingos da chuva.

O importante de que aqui falo tem um nome: eutanásia. É lamentável, para não dizer indecorosa, a forma como se tem debatido, ou por outra, como não se tem debatido o tema. António Costa e o Partido Socialista continuam o seu perigoso caminho político em que literalmente querem continuar a fazer passar os portugueses por parvos. Tanto assim é que a manifesta aceleração em querer fazer passar no Parlamento uma legislação que mudará para sempre – e, estou certo, não para melhor – a vida nacional, sem que sobre ela se exerça a devida e necessária maturação, conduzir-nos-á uma vez mais a que nos transformemos num país em que vale tudo.

É política, têm-me dito alguns. Foi a moeda de troca do BE para aprovação do Orçamento do Estado, tal como o IVA das touradas foi para o PAN, dizem-me outros. Foi. Não é preciso ser uma mente muito iluminada para se perceber o que se vai passando quando o crepúsculo cai sobre São Bento. Mas valerá mesmo tudo? Descemos assim já tão baixo? É que antes de querermos introduzir a eutanásia em Portugal devíamos, sim, exigir ao Governo que aumentasse, por exemplo, a rede de cuidados continuados e paliativos no nosso país. Costa prometeu novamente esta semana mais 800 camas para estes serviços até ao fim do ano.

Alguém acredita que as mesmas vão realmente aparecer? Onde anda a ala pediátrica do São João, no Porto? Também já foi construída? E as mortes de dois utentes em dois hospitais nacionais, que tendo-lhes sido atribuída uma pulseira amarela, que pressupõe uma observação num prazo nunca superior a meia hora, esperaram horas a fio num qualquer canto de urgências, resultando daí, ou pelo menos também por aí, a sua morte? Não tenhamos dúvidas. Também eu sou sensível a casos médicos sem retorno em que o doente, para seu descanso ou, muitas vezes, para colocar fim ao sofrimento que a situação que vive provoca nos que o rodeiam, afirma querer partir. Mas igualmente não são poucos os casos em que o mesmo doente, que num momento o desejou, veio mais tarde a demonstrar-se arrependido de o ter expressado e aliviado por tal não ter acontecido.

Tudo isto é muito mais que política. Estamos a falar de vida. A vida não pode ser utilizada como um qualquer joguete de taticismo político. Pior, como pode um Governo ousar decidir sobre matéria tão importante sem admitir a realização de um referendo que afira aquilo que realmente os portugueses pensam sobre esta matéria? Um referendo sério, com uma pergunta bem formulada e que explicite a real dimensão da questão, o que nem sempre aconteceu noutras matérias. Tudo isto é uma caixa de Pandora que, uma vez aberta, não mais volta a ser fechada, e a mim revolta-me a leviandade com que se está a tratar esta matéria.

Mas ainda alvitro outra questão, sobretudo porque infelizmente, faça-se o que se fizer, diga-se o que se disser ou apele-se ao que se apelar, no momento em que sair este artigo, salvo uma grande surpresa em que não acredito, a eutanásia estará aprovada. Assim, de qualquer maneira, como quem não quer a coisa e entre discussões sobre se o que se passa num qualquer estádio de futebol é isto ou é aquilo.

Até que ponto poderemos obrigar os profissionais de saúde a eutanasiar um doente? Mesmo que a lei lhe confira essa possibilidade e que o mesmo a solicite? Julgo que nunca escrevi um artigo em que coloquei tantas questões. E coloco-as, primeiro, porque gostaria de vê-las respondidas pelos governantes, e, em segundo, porque sei que muitos portugueses também as colocam. Esta semana dizia-me alguém entre as quatro paredes do meu gabinete. “Rodrigo, não tenhas dúvidas. Neste momento, para o Estado, o melhor doente é o doente morto”. Primeiro, ainda recusei este entendimento. Mas hoje sou levado a concordar com ele. Ganhem juízo. Portugal não mata, cuida.