18 de fevereiro de 1967. As ondas lambiam  o cadáver sem cabeça

18 de fevereiro de 1967. As ondas lambiam o cadáver sem cabeça


Apareceu na praia de São Pedro do Estoril e tornou-se um mistério. Há sempre perguntas a rodear um homem morto.


Mistério junto ao mar. Ao longo da costa maravilhosa que se estica de Lisboa a Cascais e depois, por aí fora, até ao Guincho. Um homem morto. Há sempre tantas perguntas a rodear um homem morto. Nem o oceano, azul, plácido, pensativo, é capaz de lhes responder.

A praia de São Pedro do Estoril estava vazia. A areia molhada pelas ondas que iam e vinham. Vazia, vazia, não. Um cadáver de borco, abandonado até que, ao longe, alguém o viu, correu para ele, quis saber a sua identidade. Pois. Nem o mar é capaz de se lembrar do nome de todos os seus afogados.

Era um morto velho. Um morto decomposto. Descomposto. Um morto arrastado para cá e para lá ao sabor da natureza. Um morto sem nome. Um morto sem pai nem mãe. Vem alguém correndo pela areia tentando saber se ainda pode fazer algo por ele. Mas alguém que não traz nas mãos milagres que devolvam à vida quem já a viu fugir dele.

Era, ainda por cima, um morto sem cabeça. Um morto decapitado, mais mistério ainda para somar ao mistério da sua morte. Alguém aproxima-se, curioso, e não resiste à sentença: “Bateu nos rochedos. Os rochedos partiram-lhe o pescoço, arrancaram-lhe a cabeça”.

Autoridade A polícia toma conta da ocorrência, como gostam de escrever os repórteres de mortos desconhecidos e balelas que envolvem crimes. Mas há crime? “Não podemos avançar com essa hipótese”, diz o homem fardado, pernas abertas, punhos nas ancas, boina bem composta, capitão de qualquer coisa. “Nem sequer sabemos de quem se trata. Vamos levar o cadáver para a autópsia e tentar saber mais alguma coisa sobre o assunto. Não insistam. Não é má vontade. É não saber mesmo o que se terá passado aqui”.

Remove-se o féretro. Da cabeça, nem sinais. Repousará no fundo do mar ainda com pensamentos por descortinar?

Fazem-se, logo em seguida, listas de desaparecidos. Talvez um encaixe neste defunto decapitado. Há um homem em Birre que abandonou a taberna a altas horas, bêbado que nem um cacho, atirando diatribes sobre o mundo e sobre o ser superior cujos desígnios insondáveis marcaram a sua vida-vidinha. Joaquim Tinoco Faria era o nome do idiota, encontrado pouco depois com a cabeça enfiada dentro de uma sarjeta, empapado em vómito. Não, nunca poderia ser um decapitado!

Toca o telefone na esquadra. Uma voz vinda de Aveiro em tom aflito. Domingos José Ruela Júnior fugira de casa há três dias, não dera mais notícias, acumulara dívidas ao jogo por toda a parte, tinha à perna um grupo de facínoras prontos a fazer dele um exemplo para aqueles que têm o mau hábito de não pagar. Veio a mulher no comboio da tarde, parando em estações e apeadeiros, reconhecer um marido sem cara. Desembarcou em Santa Apolónia sem saber mais como chorar lágrimas secas…