A linguagem politicamente correta e o tiro pela culatra


O grande defeito da linguagem politicamente correta é que não resolve o problema de fundo.


Eu digo “preto”, raramente digo “negro”, e creio (e espero) que não digo “pessoa de cor” – nem outras coisas que julgo igualmente ridículas e, além disso, desprovidas de sentido, porque de cor são todas as pessoas (eu não conheço nenhuma incolor). Podia dar outros exemplos de categorias discursivas, e em todos os casos iríamos dar ao mesmo. Mas fiquemos por aqui. Está feita a primeira afirmação. E, agora, a segunda: eu não me considero racista, no sentido de alguém que julga que umas raças são melhores ou piores do que outras, ou no sentido de que desconfia desta raça e não daquela, ou de uma mais do que doutra, ou, sobretudo, no sentido de alguém que acha que as características de raça (mais a mais definida como “cor”) têm alguma relevância. Tanto se me dá a cor de alguém (ou qualquer outra categoria discursiva, por exemplo de género, orientação sexual, compleição física, credo religioso, ideologia, et cetera). Porém, e ainda dentro desta segunda afirmação, eu sou filho da cultura em que cresci, e, quanto mais não seja nos domínios do id ou do inconsciente, estou cheio de “estereótipos culturais” (digamos assim), que às vezes me saem com a força bruta do que pertence àqueles domínios. E algumas vezes sai-me, totalmente a despropósito, e continuando na categoria discursiva que aqui elegi , dizer “o preto” ou “qualquer coisa o preto”. E faço mal, muito mal. Mas não é por dizer “preto”, porque se dissesse “negro” ou (sumo ridículo) “pessoa de cor”, o problema era o mesmo.

O problema não é a palavra, o problema é dar relevância a essas características para nomear ou, pior ainda, para definir a pessoa. Esse é que é o problema, e é por isso que a linguagem politicamente correta, tendo porém uma virtude, tem vários defeitos. A virtude é, obviamente, alertar-nos para a questão discursiva e para o simbolismo e a materialidade que lhe estão subjacentes, obrigando a refletir e a tentar corrigir. E é uma virtude grande, embora não supere os defeitos. E um grande defeito – para além dos efeitos totalitários, asfixiantes, higienistas, empobrecedores da linguagem e até das relações interpessoais, para já não falar no ridículo de muito do linguajar politicamente correto – é que não resolve o problema de fundo. É tão potencialmente racista dizer “aquele preto” quanto “aquela pessoa de cor”, e dizer “aquela pessoa de cor”, além de potencialmente racista, é ridículo; e ainda potencialmente mais racista, pois sob o manto diáfano da palavra “menos agressiva” podem continuar o mesmo pensamento e a mesma simbologia segregacionistas e diferenciadores, sem que se dê tanto por eles, mascarados que estão (melhor ou pior) sob um palavreado “mais simpático”. A linguagem assética que por aí se prega e evangeliza (“nada de caralhadas”, como diria o vivido Jaime Ramos, no mais recente e, como sempre, muito bom romance de F. J. Viegas) não resolve grande coisa dos problemas e até cria outros.

O que resolve os problemas é deixar de identificar as pessoas e de as tratar em função de características que as não definem realmente, e que as apoucam na maior parte das vezes, sejam nomeadas com palavras mais “cruas” ou mais “meio passadas”. Tanto faz se é preto ou pessoa de cor ou qualquer outra invenção de progressistas do linguajar. O que faz diferença, e muita, é que isso não faça diferença e que, portanto, não seja sequer usado no discurso e na ação. Que interessa a cor da pessoa? E que interessam tantas outras coisas que são só características, e não definições, do indivíduo? Não interessam nada, e esse é o verdadeiro combate, eliminar isso do pensamento e da ação, cultivar a indiferença por esses aspetos, que pertencem ao indivíduo mas não são o indivíduo (não o definem e, portanto, também não devem servir para o nomear), e não mascarar o problema com linguagem adocicada, que vai dar no mesmo. O meu objetivo não é tirar a palavra preto da minha linguagem e substituí-la por pessoa de cor. O meu objetivo é deixar de todo de me referir – exceto quando isso for relevante como característica, e não como identidade – a alguém pela cor ou por qualquer outra categoria discursiva baseada numa mera característica que, só por si, não diz e não vale nada.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


A linguagem politicamente correta e o tiro pela culatra


O grande defeito da linguagem politicamente correta é que não resolve o problema de fundo.


Eu digo “preto”, raramente digo “negro”, e creio (e espero) que não digo “pessoa de cor” – nem outras coisas que julgo igualmente ridículas e, além disso, desprovidas de sentido, porque de cor são todas as pessoas (eu não conheço nenhuma incolor). Podia dar outros exemplos de categorias discursivas, e em todos os casos iríamos dar ao mesmo. Mas fiquemos por aqui. Está feita a primeira afirmação. E, agora, a segunda: eu não me considero racista, no sentido de alguém que julga que umas raças são melhores ou piores do que outras, ou no sentido de que desconfia desta raça e não daquela, ou de uma mais do que doutra, ou, sobretudo, no sentido de alguém que acha que as características de raça (mais a mais definida como “cor”) têm alguma relevância. Tanto se me dá a cor de alguém (ou qualquer outra categoria discursiva, por exemplo de género, orientação sexual, compleição física, credo religioso, ideologia, et cetera). Porém, e ainda dentro desta segunda afirmação, eu sou filho da cultura em que cresci, e, quanto mais não seja nos domínios do id ou do inconsciente, estou cheio de “estereótipos culturais” (digamos assim), que às vezes me saem com a força bruta do que pertence àqueles domínios. E algumas vezes sai-me, totalmente a despropósito, e continuando na categoria discursiva que aqui elegi , dizer “o preto” ou “qualquer coisa o preto”. E faço mal, muito mal. Mas não é por dizer “preto”, porque se dissesse “negro” ou (sumo ridículo) “pessoa de cor”, o problema era o mesmo.

O problema não é a palavra, o problema é dar relevância a essas características para nomear ou, pior ainda, para definir a pessoa. Esse é que é o problema, e é por isso que a linguagem politicamente correta, tendo porém uma virtude, tem vários defeitos. A virtude é, obviamente, alertar-nos para a questão discursiva e para o simbolismo e a materialidade que lhe estão subjacentes, obrigando a refletir e a tentar corrigir. E é uma virtude grande, embora não supere os defeitos. E um grande defeito – para além dos efeitos totalitários, asfixiantes, higienistas, empobrecedores da linguagem e até das relações interpessoais, para já não falar no ridículo de muito do linguajar politicamente correto – é que não resolve o problema de fundo. É tão potencialmente racista dizer “aquele preto” quanto “aquela pessoa de cor”, e dizer “aquela pessoa de cor”, além de potencialmente racista, é ridículo; e ainda potencialmente mais racista, pois sob o manto diáfano da palavra “menos agressiva” podem continuar o mesmo pensamento e a mesma simbologia segregacionistas e diferenciadores, sem que se dê tanto por eles, mascarados que estão (melhor ou pior) sob um palavreado “mais simpático”. A linguagem assética que por aí se prega e evangeliza (“nada de caralhadas”, como diria o vivido Jaime Ramos, no mais recente e, como sempre, muito bom romance de F. J. Viegas) não resolve grande coisa dos problemas e até cria outros.

O que resolve os problemas é deixar de identificar as pessoas e de as tratar em função de características que as não definem realmente, e que as apoucam na maior parte das vezes, sejam nomeadas com palavras mais “cruas” ou mais “meio passadas”. Tanto faz se é preto ou pessoa de cor ou qualquer outra invenção de progressistas do linguajar. O que faz diferença, e muita, é que isso não faça diferença e que, portanto, não seja sequer usado no discurso e na ação. Que interessa a cor da pessoa? E que interessam tantas outras coisas que são só características, e não definições, do indivíduo? Não interessam nada, e esse é o verdadeiro combate, eliminar isso do pensamento e da ação, cultivar a indiferença por esses aspetos, que pertencem ao indivíduo mas não são o indivíduo (não o definem e, portanto, também não devem servir para o nomear), e não mascarar o problema com linguagem adocicada, que vai dar no mesmo. O meu objetivo não é tirar a palavra preto da minha linguagem e substituí-la por pessoa de cor. O meu objetivo é deixar de todo de me referir – exceto quando isso for relevante como característica, e não como identidade – a alguém pela cor ou por qualquer outra categoria discursiva baseada numa mera característica que, só por si, não diz e não vale nada.

 

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