Eu gosto de García Lorca: sabia sempre o que queria dizer quando escrevia. O mundo não gostava de Lorca: era filho de uma família rica de Granada e homossexual, insultava a burguesia de Espanha, entusiasmou-se pela República e pelo marxismo. Lorca faz-me falta quando escrevo sobre Ronaldo, Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, nascido no Funchal no dia 5 de fevereiro de 1985, cumprindo hoje trinta e cinco anos de idade, assim mesmo por extenso – em Ronaldo, tem sido tudo por extenso.
Quando Ronaldo joga, ouve-se ao longe o Duende de Lorca. E nós, privilegiados espetadores, assistimos à luta entre ambos porque a luta de Cristiano tem um nome: “Cada degrau que sobe na torre de sua perfeição é às custas da luta que trava com um duende, não com um anjo, como se diz, nem com sua musa”.
Tenho andado pelo mundo atrás dessa luta, do Brasil à Rússia, da África do Sul à Alemanha, pelos estádios de Portugal e Inglaterra, e Espanha, e Itália, por todos os lugares nos quais Ronaldo e o Duende de Lorca se enfrentam sem quartel.
Eu gosto de escrever sobre Cristiano Ronaldo, como gostei de escrever sobre Eusébio, sobre Coluna, sobre Chalana, sobre Jordão, sobre Luís Figo, sobre Rui Costa, e mais e mais, todos orgulho de uma nação valente. Entre mim e eles houve a amizade. E a amizade foi-se misturando nas minhas letras, nas minhas frases, trazendo à superfície a paisagem que rodeou sempre a sua romântica relação com a bola, essa mágica senhora das paixões. Ronaldo é uma personagem cativante no meio dos que atuam no palco de hora e meia de tantas vidas. Ergue-se, majestoso, parece que vai ganhando centímetros com o decorrer dos minutos. Assusta pela razão simples da presença fulminante. Recordo-me da tarde de Sochi, em junho. A Espanha sentia-se superior (alguma vez não se sentiu?), era dona do tempo, pairava sobre o estádio uma sensação nítida de que já não há forma de alterar o que se vai passando. Que fazer contra o destino? Era preciso um gesto firme, um raio de luz na noite que escurecia sobre os portugueses. Saberia Ronaldo a resposta? O suave perfume a rosmaninho daquela equipa que teima em ser de todos nós diluía-se no calor quase tropical do mar Negro. E, de repente, uma falta, um livre. Há o Duende à solta no pé direito de Cristiano. Golo! Um brasileiro a meu lado gritou: “Puta que o pariu!” Ah, deixe-se disso! Bendita mãe que o deu ao mundo. E a nós!
Poesia e prosa Não faço ideia de quantas páginas escrevi sobre Cristiano Ronaldo em jornais, em livros, em simples rabiscos de bloco-notas. Desde o tempo em que ele era um menino com borbulhas, de pernas finas e dribles de serpentina. Nem sequer faço ideia de quanto mais irei escrever sobre ele e não tardarei a seguir para Budapeste e para Munique, onde irá ser outra vez capitão de Portugal no campeonato da Europa, eu que o vi em todos os jogos de Europeus e Mundiais, de 2004 a 2018. Algo é certo, inequívoco: ele é sempre um fornecedor de imagens, um inventor de episódios, podia escrever-se a si próprio, em poesia ou em prosa, embora, com o decorrer do tempo, tenha cada vez mais deixado de ser poesia e passado a ser cada vez mais prosa. Porque a poesia é a finta e a prosa é o golo. Ronaldo tornou-se um fanático do golo, um viciado no golo. De vez em quando mistura tudo, drible e golo, prosa e poesia. E não: “Não deixa entrar na sala essa terrível mosca do aborrecimento que costura todas as cabeças com um fio ténue de sono e põe nos olhos dos ouvintes pequenos tufos de pontas de alfinete”. Então é também Lorca.
Certa vez, numa discussão sobre quem eram os melhores atores da história do cinema, Eileen Atkins, a realizadora inglesa, saiu-se com esta: “Alec Guinness e Anthony Hopkins são os únicos atores capazes de não mexer um músculo durante um grande plano e, mesmo assim, conseguir que o espetador leia os seus pensamentos”. Imaginem Ronaldo num grande plano. Sem mexer um músculo. Consegue fazer-nos adivinhar os seus pensamentos. E, no entanto, nenhum de nós desconfia sequer o que vai fazer a seguir. Movido, certamente, por esse poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica.
“Vive depressa, morre cedo, sê um cadáver bonito!”, dizia a velha frase do pós-guerra, esse tempo em que a vida fora por demasiadas vezes obrigada a intervalos. Para Cristiano, não há intervalos. Dir-se-ia que de cada vez que o árbitro apita aos 45 minutos, mandando os jogadores para o descanso, explode nele uma irritação de menino que se vê obrigado a deixar a bola para ir lanchar, às ordens da mãe. Tentemos vê-lo através de um caleidoscópio. Perceber os pormenores do que perpassa pela sua cara durante segundos, reflexos naturais do pensamento. Ele corre. Corre sempre. Era um rapazinho com pressa que se tornou um homem apressado. De súbito tem trinta e cinco anos, por extenso, repito, e nós recusamos a acreditar no bilhete de identidade quando levanta voo com asas nos pés, como um Mercúrio alabastrino, e fica lá no alto, pairando sobre o mundo, mas o mundo todo, o mundo por inteiro, o universo, se quiserem, a bola entrando violenta na baliza de um desesperado guarda-redes genovês que tem no peito o emblema que recorda Andrea Doria, o almirante da Sereníssima República. Quando pousou, sacudindo as asas, comentou apenas: “Talvez tenha sido o meu melhor golo de cabeça…” Tivesse desaparecido no céu naquele momento e ficaríamos sem dúvidas de que era simplesmente um anjo cujas asas um deus onírico acabara de desenhar.
Santo António é uma paróquia dos subúrbios do Funchal, nos caminhos que levam para o interior da montanha, em direção ao Monte e à Camacha. E depois, até onde a vista alcança, há o Pico dos Barcelos. Um lugar tão bom como outro qualquer para nascer uma estrela. Talvez esta crónica, se tivesse fundo musical, merecesse um piano de Chopin ou, melhor ainda, uma fanfarra cavalgante de Wagner, carregada de valquírias. Mas deixo-a só assim, como uma cantiga que conta tudo o que fui e vou escrevendo sobre Ronaldo: “Eu vi um menino correndo/ Eu vi o tempo/ Brincando ao redor/ Do caminho daquele menino…”