O impacto jurídico do coronavírus


Numa atitude extremamente responsável, os portugueses retirados de Wuhan optaram por uma quarentena voluntária, o que é de louvar.


O coronavírus ameaça tornar-se um sério problema à escala mundial. Embora os dados médicos tenham demonstrado que este vírus tem uma taxa de mortalidade bastante inferior à de surtos anteriores, situando-se em 10% dos infectados, a verdade é que a elevada taxa de propagação do vírus, com cada doente a transmitir em média o vírus a 2,68 pessoas, leva a que a situação seja extremamente preocupante. Efectivamente, esta taxa de propagação constitui um elevado risco para a saúde pública, sendo por isso de criticar a reacção inicial da OMS, que hesitou em declarar uma situação de emergência global quando aos olhos de todos já o era.

É, assim, necessário adoptar medidas que protejam as pessoas perante este surto infeccioso. Neste âmbito tem-se salientado que a Constituição portuguesa não permite a imposição obrigatória de quarentena às pessoas infectadas com um vírus. Na verdade, o art.o 27.o, n.o 3, h) da Constituição apenas admite o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente. Não estando em causa uma situação de anomalia psíquica, não é assim admissível o internamento de portador de doença contagiosa. No entanto, a Lei de Bases da Saúde, lei 95/2019, de 4 de Setembro, atribui à autoridade de saúde a possibilidade de “desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a pessoas que, de outro modo, constituam perigo para a saúde pública” (Base 34, n.o 2, b)). A referida lei prevê ainda que “em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do sector social e de outros serviços e entidades do Estado” (Base 34, n.o 3). E atribui-se ainda “em especial, aos organismos competentes estudar, propor, executar e fiscalizar as medidas necessárias para prevenir a importação ou exportação das doenças submetidas ao Regulamento Sanitário Internacional, enfrentar a ameaça de expansão das doenças transmissíveis e promover todas as operações sanitárias exigidas pela defesa da saúde da comunidade internacional” (Base 35, n.o 2). Não é, assim, correcto afirmar que o Estado está totalmente desarmado perante uma epidemia global que afecte o território nacional.

Em qualquer caso, as medidas de polícia sanitária, embora baseadas no interesse colectivo, entram em conflito com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art.o 18.o da Constituição), cuja restrição só pode ser realizada para assegurar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, não podendo diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (art.o 18.o, n.os 2 e 3 da Constituição). Ora, a doutrina tem vindo a considerar que a resolução do conflito entre os direitos, liberdades e garantias individuais e o interesse colectivo tem de assentar nos seguintes três requisitos: necessidade, adequação e proibição do excesso. O critério da necessidade impõe a existência de uma lesão ou risco efectivo de lesão para a saúde pública como pressuposto de qualquer medida de polícia sanitária. O critério da adequação impõe que a medida tomada seja efectivamente idónea para colmatar a lesão da saúde pública ou atenuar as possibilidades de verificação desse risco. Finalmente, a proibição do excesso impõe que a restrição aos direitos fundamentais não afecte o conteúdo fundamental desses direitos e seja proporcional à necessidade e adequação da medida de polícia sanitária. Em último caso, nas situações mais extremas pode ser decretado o estado de emergência e podem ser suspensos os direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.o 19.o, n.o 3, da Constituição, mas, mesmo nesse enquadramento, a restrição apenas poderia ser parcial.

Numa atitude extremamente responsável, os portugueses retirados de Wuhan optaram por uma quarentena voluntária, o que é de louvar. Susan Sontag escreveu que “a doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo, cada um nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona”. É precisamente por sabermos isso que todos devemos solidariedade e apoio a quem seja atingido pela doença, devendo qualquer medida de polícia sanitária respeitar sempre os direitos dos doentes.

 

Bastonário da Ordem dos Advogados

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990