Torre do Tombo. A viagem enquanto acumulação e decifração

Torre do Tombo. A viagem enquanto acumulação e decifração


Entre os grandes horizontes oclusos aguardando outro tipo de viajantes, a Torre do Tombo, com os seus 100 quilómetros de documentos, além de ser o grande arquivo da memória de Portugal, é o palco de uma guerra discreta contra um inimigo formidável: a obliteração.


Quilómetros e quilómetros de documentos sem vista para coisa alguma. Nem ao longe nem ao perto. Na Torre do Tombo, um tipo sem competências de decifração mal sabe para onde virar-se. E a partir de uma certa idade ou profundidade das águas em que ali nos movemos, o mais fácil é perder o pé. Damos por nós a vaguear numa sensação de insónia ligeira. E mais vale dar-nos um piripaque, desatarmos numas sandices líricas, porque a matéria que nos rodeia, com a sua ressonância nervosa ao longo daqueles corredores de âmbar, não nos dará grandes pistas. Assim, bem podemos sentir que estamos a avançar por um labirinto que é como um sonho que foi crescendo de geração em geração: todas essas instruções e regras, uma ordem contra o caos, “uma obra comovida/ como um barco construído com as unhas dos mortos”. Estes versos, como outros que se coserão na manta de retalhos deste texto, são do poeta francês Gérard de Cortanze, de O Movimento das Coisas (ed. Campo das Letras, 2002), livro que por um qualquer acaso nos caiu nas mãos, como uma chave, pela altura em que fizemos a visita ao coração da memória do nosso país.

Amiudadamente, esta casa vai sendo notícia pelas razões mais variadas. Pode ser um pergaminho histórico que deu à costa nalgum leilão online e foi apreendido, podem ser as vociferações queixosas de algum livreiro antiquário ou colecionador irado por a Torre resistir aos seus cercos, por o Estado não abrir os cordões à bolsa para ficar com os papéis de algum mito maior ou menor da nossa história, ou pode ser também, como aconteceu no final do ano passado, a notícia de um documento fabuloso que se terá desencravado da obscuridade em que persistirão tantos outros tesouros no magno arquivo luso. Acontece que tantas vezes, como explica ao i Silvestre Lacerda, diretor da Torre do Tombo e o “guarda-mor” de um espólio documental que ocupa 100 quilómetros de estantes, a ignorância anda muito atrevida, e isto tanto dá para vir impingir tesouros inestimáveis e supostamente negligenciados como dá para se achar um mesmo documento uma e outra vez, e alardear uma nova descoberta naqueles infindáveis arquivos.

Em novembro passado foi noticiado que três investigadores espanhóis descobriram na Torre do Tombo uma espécie de relato apócrifo da atribulada viagem de circum-navegação ao globo, essa aventura marítima começada por Fernão de Magalhães e terminada por Juan Sebastián Elcano. O documento teria sido um testemunho arrancado por portugueses na Malásia a um tal Martín de Ayamonte. Não sabe muito da sua vida nem que destino levou, a não ser que detinha o posto de ajudante de marinheiro na nau Vitória, a única que completou a primeira volta ao mundo. De acordo com o seu próprio testemunho, a aventura foi demais para ele, os perigos, reais ou imaginários, deixaram-no aterrorizado. E não é que o rapaz fosse mole ou covarde, basta dizer que da frota de cinco navios e das 247 pessoas a bordo, todos os que, no verão de 1519, partiram com Fernão de Magalhães na viagem ao redor do mundo, apenas 18 pessoas regressaram. Martín não foi um deles. O terror fê-lo desertar com um soldado amigo, tendo fugido para Timor. E a visão que ia ganhando peso e o atormentava nos seus sonhos era a ideia de poder vir a deparar-se com o fim do mundo, um local que no delírio estuporado daqueles dias surgia como uma grande cascata onde as naus haveriam de desaparecer sem deixar rasto.

Afinal, este documento era mais do que conhecido, mais do que estudado entre nós, garante Silvestre Lacerda, que é também diretor-geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Mas concede que talvez o documento “estivesse muito no domínio académico e não houvesse uma apropriação social desse passo da historiografia portuguesa”. O responsável da Torre reconhece que, na profusão do espólio que tem à sua guarda, é bastante comum que importantes descobertas se façam mas que o eco demore a corresponder-lhes. A divulgação fica dependente do tratamento, e é certo que, se há investigadores muito talentosos e empenhados no que toca aos trabalhos de escavação e decifração, outros são mais competentes no tratamento, na capacidade de empurrar para a consciência pública as suas descobertas. E a esse respeito, Lacerda destaca que “os centenários e as comemorações são sempre oportunidades para dar a conhecer certos achados fora das comunidades científicas”. Quanto ao depoimento do desertor, que se encontra atualmente em exposição em Sevilha, o diretor da Torre lembra que este já fazia parte do Registo da Memória do Mundo. Sem disfarçar a nossa ignorância, perguntámos que vem a ser isso. E o nosso interlocutor, sem nunca se mostrar enfadado nem minimamente abalado pelo desconhecimento e a possível impertinência de algumas perguntas, explica-nos que, em 2007, a equipa que lidera submeteu à UNESCO 83 mil documentos para serem reconhecidos no Registo da Memória do Mundo e que não só foi bem-sucedida como foi essa a primeira vez que o projeto, iniciado em 1992, reconheceu de uma assentada todo um arquivo quando, até ali, a avaliação e reconhecimento eram feitos para documentos isolados. O arquivo em causa corresponde aos documentos que mapeiam as relações diplomáticas de Portugal entre os séculos xvi e xviii.

Silvestre Lacerda conta que, em 2005, ano em que assumiu a direção da Torre, estava já em processo o reconhecimento do primeiro documento nacional ao abrigo daquela iniciativa. Trata-se da Carta de Pêro Vaz de Caminha. Mais tarde foi reconhecido também o Tratado de Tordesilhas mas, aí, Lacerda ri-se, recordando que Espanha se abalançou sozinha nessa empreitada e que o embaixador de Portugal junto da UNESCO teve de lembrar o óbvio: “Mas isto é um tratado que envolve dois países, e o outro lado tem o seu documento, que está na Torre do Tombo”. Assim, cinco séculos depois, as duas antigas e tão nostálgicas potências lá tiveram o discernimento de, depois de dividirem o mundo entre elas, se unirem para ver reconhecida a portentosa audácia de outros tempos.

Se atrás desfizemos a relevância do achado dos três investigadores espanhóis, que levaram para Sevilha o depoimento de Martín de Ayamonte como se se tratasse de uma desafiante perspetiva nova sobre a atribulada viagem de circum-navegação do globo, por sorte, no dia em que visitámos a Torre, Silvestre Lacerda disse que a sua equipa estava a analisar uma nova e muitíssimo prometedora aquisição – um documento que, segundo tudo parecia indicar, constituiria, esse sim, um verdadeiro achado. Trata-se um pergaminho em letra visigótica, do séc. xi, mais precisamente, do ano 1016, dado como perdido no séc. xvii. Dias depois confirmou-se a importância deste achado, e no texto ao lado damos-vos conta em mais pormenor do documento.

Mas se a visita à Torre do Tombo se desdobrou numa autêntica viagem, e se pudemos dar-nos conta tanto da matéria como da tarefa de que nos vimos rodeados, isso deve-se ao facto de termos tido em Silvestre Lacerda bem mais do que um mero Virgílio burocrático. O nosso anfitrião quis saber quanto tempo tínhamos e riu-se quando lhe dissemos que tínhamos tanto tempo quanto fosse necessário. A viagem que se seguiu parecia em igual medida uma forma de generosa pedagogia e um teste. Teríamos tanto interesse em descobrir a Torre como o seu guardião, evidentemente, tinha em dá-la a conhecer?

Sem nunca se apressar por qualquer das etapas, Lacerda não deu o menor sinal de enfado face a um território aonde volta todos os dias, antes parecia tomado de um entusiasmo próprio de quem agradece a possibilidade de ver o seu mundo através do olhar que o estranha, e deu provas de orgulho face à tarefa que a si e à sua tripulação foi confiada, neste navio fundeado do outro lado das cataratas, recolhendo vestígios que se tornam monumentos naquele local onde a História é filtrada através do encanto e da consternação da vida, onde os mitos se deixam dissecar, onde os séculos se dispõem num percurso que se faz ao ritmo a que respiramos. Um arquivo desta dimensão, de tão imerso estar na história de um país, acaba por desviar-se, colocar-se de fora, observando-nos com uma distância um tanto irónica.

“A desordem está aí”, diz-nos Cortanze, “fora do segredo das coisas”. Naquele lugar, nas salas onde diariamente tem lugar uma guerra muitíssimo pacata: um combate à aniquilação, Lacerda teve o cuidado de nos apresentar aos seus técnicos, artistas da preservação, e àqueles que se ocupam do resgate digital, da difusão do imenso espólio. Todos os funcionários e até mesmo os seguranças, de tão prestáveis, de tão discretos e empenhados, mais pareciam ser “prisioneiros de um erudito desejo de agradar”. E então vimos o ciclo de resgate de um documento depois de entrar no edifício pelas traseiras, ficando isolado, de quarentena. Como são depois aspirados e depositados numa câmara de expurgo, até que o oxigénio se liberte das suas fibras, deixando morrer tudo o que possa comprometê-las. O combate a fungos mais resistentes é feito em arcas onde os documentos são sujeitos a temperaturas de 35 graus negativos mas, depois de tudo isso, depois de os documentos serem guardados em caixas feitas em materiais de PH neutro, há ainda um sistema de avaliação em que os técnicos definem o estado de degradação dos mesmos, sendo os mais necessitados sujeitos à intervenção que, no caso de um só maço ou livro, em papel ou pergaminho, pode durar meses e custar alguns milhares de euros.

O viajante vacila, treme. Gagueja. É verdadeiramente uma perspetiva assombrosa da viagem enquanto acumulação, e seja nas salas de leitura – onde Lacerda nos explicou o papel verdadeiramente crucial que têm os investigadores e todas as pessoas que requisitam os documentos deste arquivo, sendo esses pedidos que determinam a sua modernização, já que é esta requisição que leva a que seja feita a cópia digital, que passa a estar disponível na biblioteca online da Torre – seja nos depósitos, torna-se quase amesquinhante ver arrumada uma variedade multiforme de despojos, conservados durante séculos, os diques do mar e as fotografias, os manuscritos, as provas de um esforço brutal para contrariar o caos, toda essa burocracia – miraculosa se olhada à distância –, os documentos castigados pelo tempo, pelas pragas bibliófagas, documentos que sobrevivem com todas essas nódoas embebidas de sol, apuradas pela sombra, um espaço que impressiona à vista pelo disposição das estantes na quadrícula, mas mais ainda os outros sentidos, que pressentem esse labirinto que se ergue feito de ecos, com o seu infinito de riquezas involuntárias, de sonhos e de testemunhos, “quase uma linguagem pura a caminho de um país/ de moinhos que se respondem”.

A sensação de tontura toma conta de nós ao debruçarmo-nos sobre um livro com corpo em pergaminho manuscrito com vários séculos, com a caligrafia inclinada e exuberante como se registasse poções mágicas, assentando afinal disposições ao nível de propriedade ou minudências da gestão e administração do país, da vida das suas instituições. E esta mesma sensação de tontura nos atinge diante das estantes que ocupam salas imensas, uma paisagem oclusa e que nos põe diante de estranhas imagens vindo de cá para lá na imaginação árida que um lugar daqueles sustenta.

Há uma outra particularidade do edifício, da sua arquitetura, que nos chamou a atenção. Mas vale a pena recuar primeiro a 1755, o ano do terramoto, para lembrar que a Torre do Tombo integrava o Castelo de São Jorge, e era nesse arquivo que se encontravam os tombos da propriedade régia. Silvestre Lacerda conta que na sequência do terramoto, muita coisa se perdeu, mas no desastre houve algo de curioso, algo que viria a ser aproveitado na construção da atual Torre, mais de dois séculos depois. A derrocada da torre abafou o incêndio, e isso, aliado ao facto de estar num sítio alto, não sendo absorvida pelo maremoto, levou a que muitos documentos se salvassem. No final deste ano irão assinalar-se os 30 anos da abertura ao público da Torre do Tombo na Alameda da Universidade, em Lisboa, e o edifício projetado por Arsénio Cordeiro foi concebido com uma estrutura tumular de modo a que, na eventualidade de um novo desastre como aquele que deixou em choque toda a Europa, a Torre venha abaixo e fique como um sarcófago, abraçando e protegendo o tesouro que guarda.