Não é de agora que alguém passa de um momento para o outro de bestial a besta – o inverso também é possível e acontece, embora talvez não seja tão fácil nem tão frequente. Não é de agora, não, é assim desde que o mundo é mundo, e creio que há de continuar a ser. Não há coisa mais simples, é como morrer, basta estar vivo. Para a degradação em besta, basta estar no estado de bestial (ou mesmo, em certos casos, um pouco acima da aparentemente pacífica mediania). É elementar, e da natureza das coisas humanas. Umas vezes precisa de uma conjugação de fatores, outras de um apenas, outras quase só de uma viragem do vento ou de um estalar de dedos. Chamar-lhe-ia – embora seja porventura demasiada História e muita literatura para algo tão simples e conhecido – o “efeito Coriolano”, pensando no militar romano (cuja tragédia Shakespeare, com o seu olho clínico para os podres da humanidade, eternizou em peça assim chamada) que um dia era herói, a seguir um pária e, tempos depois, estava morto, às mãos, mais coisa menos coisa, de quem o tinha antes levado ao altar. Suprema e efémera glória. Suprema, não; traiçoeira apenas, afinal. Grande foi o general Caio Márcio um dia, chamado Coriolano e feito cônsul depois de tomar Corioli, seguidamente inimigo do povo e bode expiatório e, finalmente, por má fortuna e passos errados, já só um cadáver.
Convém não esquecer, e temer sempre os efeitos da bestialidade e, sobretudo, os humores da turba. E sobretudo convém não o esquecer nos tempos que correm – e por esse mundo fora em geral e pelo nosso país em particular temos vários e bons exemplos, inclusive recentes –, tempos em que quase tudo é tão instantâneo como o Nescafé. Tudo se faz e desfaz, julga e sentencia, engrandece e envilece em momentos. Basta uma notícia, verdadeira ou falsa, uma ideia, uma imagem, uma suposição, um incómodo. Quem no dia anterior era incensado, ou cultivado, ou útil, ou tudo isso junto, no dia seguinte já pode ser tóxico, desgraçado, dispensável. E com a mesma facilidade com que foi levado em ombros, e muitas vezes pelos mesmos, leva um despudorado pontapé no traseiro. A memória é curta, a necessidade de sobrevivência imperiosa, e a decência e a solidariedade podem ser dispensáveis na direta proporção da urgência da hipocrisia. Um pouco de pó de café, ou parecido, mistura-se em água, mexe-se, e já está. Parece mesmo café e tudo, e ide em paz, que para a frente é que é o caminho. Tantos Coriolanos por aí, muito e tão tonto regozijo, sedutora pressa em pontapear. Até que um dia pode acontecer, também, a quem agora pontapeia, sem pinga de pudor. Pode acontecer a qualquer um. Aliás, tudo pode acontecer a qualquer um. Pois pode, verdade fatal e tantas vezes esquecida. Se acaso fosse mais vezes lembrada, far-se-ia menos e não se aplaudiria o que, amiúde, e bem vistas as coisas, apenas devia suscitar tristeza ou mesmo nojo. É a vida. Mas é pena. E sempre guardado está o pedaço, ou o fel, ou o veneno…
Escreve quinzenalmente à sexta-feira