Uncut Gems. Os diamantes em bruto dos irmãos Safdie

Uncut Gems. Os diamantes em bruto dos irmãos Safdie


Os irmãos Safdie espremeram ao máximo Adam Sandler, que aqui nos deixa uma das melhores atuações da sua carreira, e ainda aproveitaram estreantes e não atores para conferir mais realismo ao filme. Uncut Gems estreia-se amanhã na Netflix.


Numa das cenas mais icónicas de Happy Gilmore, comédia de 1996 que catapultou Adam Sandler para a fama, Gary Potter (Kevin Nealon) aconselha o novato Happy (Sandler) no campo de golfe. “O habitat natural [da bola] é o buraco. Porque não a mandas para casa?” Sandler aproxima-se da bola, enquanto tranquilamente sussurra: “Vou enviar-te para casa. Está na hora de ires para casa, bola”. Contudo, a tacada não foi suficiente e o ator que ao longo da sua carreira aperfeiçoou o papel de homem-criança lança-se para o chão e começa a gritar para a bola: “Porque não foste para casa?”

Vinte e três anos depois, quem parece ter finalmente encontrado uma casa é Adam Sandler, um diamante em bruto que os jovens realizadores Benny e Josh Safdie souberam polir. A dupla que se tornou uma das mais recentes coqueluches do cinema independente tem no currículo trabalhos como Vão-me Buscar Alecrim (2009), um Kramer vs. Kramer (1979) dos tempos modernos e parcialmente baseado nas suas experiências com o seu pai divorciado, ou Good Time (2017), um thriller criminal que coloca um Robert Pattinson a assaltar bancos com o seu irmão com problemas mentais (interpretado pelo próprio Benny).

Se grande parte da carreira de Sandler é associada a filmes de comédia (como dizer isto sem parecer indelicado?) repudiados pela crítica (“Um fracasso total, preguiçoso e embaraçosamente preguiçoso, repleto de piadas dignas de arrepios”, escreveu Peter Travers, da Rolling Stone, sobre Jack and Jill, filme em que Sandler representa o papel de um casal de gémeos, sendo um deles uma mulher que o próprio interpreta em drag), o ator foi ainda assim acumulando um culto em seu torno que acreditava que ele era, efetivamente, um ator talentoso.

O argumento mais comum a ser trazido para esta conversa era a sua performance em Punch-Drunk Love (2002), de Paul Thomas Anderson, e foi também esta a cartada que os Safdie usaram – não fosse este o filme que os cativou a escolher o ator para o papel do neurótico judeu que é o vendedor de jóias Howard Ratner. “Quando o Punch-Drunk Love saiu, foi uma confluência de todos os nossos interesses”, disse Josh ao site Slash Film. “A beleza deste filme é que o Paul Thomas Anderson fez um filme [típico] do Sandler como uma comédia absurda. Acredito que o Sandler é o mais parecido que a nossa geração tem com um Jerry Lewis”.

Este é um projeto bastante pessoal para os realizadores, que há mais de dez anos falam em entrevistas sobre a vontade de fazerem um filme no chamado bairro dos diamantes, em Manhattan, (onde o pai dos irmãos Safdie trabalhou, também como vendedor de diamantes, durante anos). Sandler era o ator perfeito para este papel. “Sabíamos desde o início que precisávamos de alguém como ele [Sandler] para levar o Howard a cruzar a meta”, explicou na mesma entrevista Benny. “Poderia resultar num homem horrível por quem não queremos torcer. Se isso acontecesse, o filme não funcionaria”.

Trabalhar os diamantes No início do filme estamos na Etiópia, onde um grupo de judeus consegue extrair de uma mina uma rara opal negra. Dois anos depois, a jóia chega às mãos de Howard, que descobriu a pedra preciosa num vídeo de YouTube e quer vendê-la por, pelo menos, um milhão de dólares.

Pouco depois de se ver com este diamante nas mãos, Demany (Lakeith Stanfield, da série Atlanta ou do êxito indie Short Term 12), intermediário responsável por levar estrelas do desporto e do mundo da música à loja de Howard em troca de uma comissão, traz consigo Kevin Garnett (interpretado pelo próprio), uma das maiores estrelas da NBA, para fazer compras.

Com cifrões nos olhos, Howard tenta impingir as mais variadas quinquilharias excêntricas ao poste dos Boston Celtics, incluindo um Furby revestido em diamantes e ouro (que esteve disponível para venda na loja online da A24, produtora do filme, antes de ter esgotado), o jogador dispensa prontamente. Mas quando o vendedor lhe mostra a opal, Garnett fica obcecado. Na cabeça do jogador, vai ser este artefacto que lhe vai dar a sorte que necessita para chegar às finais dos play-offs. O jogo aconteceu em 2012, ano em que a trama se passa, contra os Philadelphia 76ers, e a série de sete jogos é a grande linha narrativa do filme. O basquete é uma das grandes paixões dos irmãos, que assim quiseram também prestar tributo ao seu pai. A escolha do jogo que queriam representar não foi fácil: por alguma razão demoraram dez anos a fazer o filme, tempo em que reescreveram o argumento mais de cem vezes.

Vários jogadores de basquete estiveram associados ao projeto, incluindo Kobe Bryant, que faleceu este domingo r que no processo acabou por ser descartado, uma vez que o filme se passa na costa Este e a malograda estrela dos Los Angeles Lakers jogava na costa Oeste. Os outros jogadores associados foram Amar’e Stoudemire, ex-jogador dos New York Knicks, um dos judeus negros mais famosos do mundo, que não participou por se recusar a rapar o cabelo num regresso ao aspeto físico que tinha nos play-offs de 2012. Já Joel Embiid, atual poste dos 76ers cancelou a sua presença porque a temporada profissional já tinha começado. Dos jogadores disponíveis e interessados em participar no filme sobrou Kevin Garnett. “O destino é mesmo real”, disse Josh ao site Uproxx. “O papel estava destinado a ser do Kevin desde o início – mesmo que o odiemos por sermos fãs dos Knicks”. Os Knicks e os Celtics são eternos rivais.

Apesar de Uncut Gems ser o primeiro filme de Kevin Garnett enquanto ator, o seu desempenho tem sido bastante elogiado pela crítica. “Garnett não faz uma aparição especial para preparar uma cena ou para fazer publicidade – ele está mesmo a atuar e é mesmo incrível”, escreveu Hunter Harris da Vulture. Esta é, aliás, uma das grandes qualidades dos Safdie, que encontram nos seus filmes um equilíbrio entre atores experientes, caso de Sandler e Pattinson, com atores não profissionais, como no filme Good Time, cujo elenco inclui “pessoas reais” com doenças psicológicas.

Neste novo filme, o ex-jogador não é único que se estreia na representação. Julia Fox, no papel de Julia, a jovem amante de Howard, é uma das grandes surpresas, com a confiança e o magnetismo que traz para a personagem. Jonathan Aranbayev ( que tinha 14 anos quando foi pela primeira vez contactado para participar no filme), que desempenha o papel de Eddie, filho mais velho do protagonista, tem como qualificação para o papel a própria biografia: como a personagem, também ele provém de uma família do negócio de jóias.

“Primeiro tive de ir àquela coisa – esqueci-me do nome – para ver se eles me queriam no filme”, contou o jovem ao The Ringer sobre a sua primeira experiência de casting, para a qual nem sequer estava bem preparado. “Não sabia bem no que me estava a meter. Por isso, limitei-me a fazê-lo. O meu pai disse, vai e faz a tua cena. E foi o que fiz”.

Jennifer Venditi, a diretora de casting do filme, disse à revista Backstage que grande parte do processo consistiu em simplesmente procurar pessoas nas ruas do bairro dos diamantes. Foi assim que a equipa encontrou Roman Persits, um verdadeiro joalheiro que trabalha neste local e que participa no filme como Roman. “Quando alguém entra na sala e consigo perceber que personificam aquilo que realmente são – não estão a tentar ser quem pensam que eu quero que eles sejam – isso é o mais atraente. Não há nada pior do que alguém que está desesperado para ser o que eles pensam que eu quero que eles sejam”.