Um pouco mais de uma década (entre avaliações e propostas), 196 obras e cinco milhões de euros: eis os números da venda da Coleção BPN, que acaba de passar para o Estado. A notícia foi dada pela própria ministra da Cultura em entrevista ao jornal digital Observador, publicada na segunda-feira, horas antes de o protocolo de cedência das obras ser assinado no Forte de Sacavém, em Loures, que veio a acontecer ontem de manhã. O acordo foi celebrado entre a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) e a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que determina que a Coleção BPN ficará afeta ao Ministério da Cultura.
A Coleção BPN segue agora para Coimbra, onde será criado um novo “pólo de arte contemporânea portuguesa”, assim definia Graça Fonseca na citada entrevista. Para já, a coleção vai ficar num edifício na Rua Ferreira Borges, no antigo Banco Pinto & Sotto Mayor, mas o intuito da autarquia é que seja transferido para o edifício da Manutenção Militar, que irá receber obras profundas para o efeito. O acordo de cedência contempla um período de 25 anos, que pode depois ser renovado por igual intervalo temporal, tal como aconteceu com a coleção Miró, também proveniente do BPN, comprada por 54,4 milhões de euros em 2018 e entretanto depositada no Museu de Serralves.
Júlio Pomar, Helena Almeida, Cargaleiro, Amadeo de Souza-Cardoso, Júlio Resende, Maria Helena Vieira da Silva, Rui Chafes, Paula Rego, João Cutileiro ou Nadir Afonso contam-se entre os artistas representados na coleção: no total, 156 autores são portugueses e 40 são estrangeiros. O acervo era, desde que as obras foram nacionalizadas em 2008, gerido pelas empresas Parups e pela Parvolorem, criadas em 2010 para recuperar os créditos do antigo BPN e gerir os ativos remanescentes.
Depois de terem sido encerradas, numa primeira fase, no cofre da Caixa Geral de Depósitos, em 2016 ficaram à guarda da empresa especializada Iterartis. A Secretaria de Estado da Cultura já tinha tentado comprar, em 2016, 46 destas obras, todas pertencentes a artistas portugueses, por um milhão de euros, mas o negócio acabou por não se concretizar. Desta vez, a transação foi para a frente através de uma “dação em cumprimento”. Ou seja, explicou a ministra ontem de manhã, “os cinco milhões de euros em que foi avaliada a coleção diminuem o valor da dívida entre a Parups e a Parvalorem e o Estado”. Em 2017, os relatórios e contas da empresa consultados pela Lusa avaliavam o acervo entre 4,1 e 6,1 milhões de euros. Após o trabalho de avaliação levado a cabo pela DGPC, os valores foram retificados, tendo descido o preço de “algumas dezenas de peças”, escrevia o Público.
Há três obras da pintora Vieira da Silva que não seguem para Coimbra: estão integradas na Fundação Árpád Szenes-Vieira da Silva desde 2015 e lá vão permanecer.
Decisões avulso Pedro Lapa, ex-diretor do Museu do Chiado e do Museu Coleção Berardo e um dos especialistas convocados no passado para dar um parecer sobre a coleção Miró, valoriza positivamente a integração definitiva destas obras no acervo público. “A compra faz todo o sentido, mas a compra aqui é um termo tecnocrático, porque isto foi objeto de uma nacionalização de um bando depois do muito dinheiro que o Estado e os portugueses puseram para resolver um problema profundo que este e outros bancos têm vindo a causar à nossa vida coletiva e, portanto, este foi apenas o ressarcimento de uma ínfima parte que todos gastámos”, lembra o especialista, saudando este passo. “Acho muito bem que o Estado tenha tido esse cuidado, que tenha integrado os Mirós e que integre este conjunto de obras e muitos outros de outros bancos nas mesmas circunstâncias”.
Contudo, Pedro Lapa encontra neste processo um problema de fundo que deveria ter sido resolvido a montante, muito antes de se tomar uma decisão definitiva sobre o futuro deste núcleo de obras: é que, na sua ótica, não estamos perante uma coleção. “No caso do BPN isto é não é uma coleção: é um conjunto amplo de pinturas de bons artistas”, refere. “ Não estamos perante um conjunto de obras que representam uma determinada ideia, um determinado período ou artista”. E a falta de critério científico acarreta consequências. “O meu problema está em que estas decisões em termos políticos sejam tomadas de forma avulsa. O conjunto de coleções e obras de artes que estes bancos possuíram deveria ser objeto de uma reflexão mais ponderada e feita essencialmente por especialistas, tendo em conta o tecido museológico nacional, as necessidades nacionais, todos os princípios da descentralização e tudo mais. Antes da decisão política, deve passar-se por uma abordagem e um enquadramento de natureza mais científica”, diz ao i.
Para Pedro Lapa, tal não aconteceu nem neste caso nem no destino que foi dado à coleção Miró. “Os Mirós estão em Serralves fruto de uma decisão politicamente demasiado comprometida e cientificamente muito pouco clara. Não consigo perceber como é que, de repente, uma fundação que tem como missão representar a arte a partir de cerca de 1968 recebe o espólio de um artista que termina, precisamente, em 1968”, nota.
Para o especialista, “o país precisa de uma redistribuição de uma perspetiva em função do país e das obras que existem com um todo”, e não que os acervos comecem a ser aglomerado e distribuídos unicamente para preencherem lacunas que vão além dos critérios científicos – o que, defende, está a acontecer neste preciso momento. “Penso que este núcleo [as 196 obras que vão para Coimbra] vem servir duas questões puramente políticas que não deixam de ser importantes, mas que não chegam, e que são: preencher um espaço que estava vazio e descentralizar. Muito bem, são questões importantes a dar resposta, mas não chegam. Esta é uma perspetiva muito pouco pensada e articulada relativamente às questões inerentes a este património móvel de que estamos a falar”.
Coleção SEC. 94 obras continuam desaparecidas
Graça Fonseca não revelou onde foram localizadas as obras agora ‘recuperadas’.
Continuam por localizar 94 obras da chamada Coleção de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura, comummente chamada Coleção SEC. O número foi revelado pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, em entrevista ao Observador. Inicialmente, seriam 170 as obras desaparecidas, conforme a notícia avançada pelo Expresso em junho no ano passado, e que dava conta que o Estado chegou a perder o rasto a mais de 200 obras. Graça Fonseca rejeitou, na altura, que as obras estivessem desaparecidas. Ao longo dos anos houve uma política de empréstimos a diferentes instituições, normalmente públicas, e o trabalho que a DGPC [Direção-Geral do Património Cultural] está a fazer é, local a local, identificar as obras que não estão em determinados locais mais centrais”, esclareceu então.
O relatório da DGPC ‘encomendado’ pela ministra da Cultura’ indicou, entretanto, que “não foi possível localizar 94 obras de arte inventariadas na coleção do Estado”, tendo sido este outro dos temas em destaque desta que foi a primeira grande entrevista concedida pela ministra desde que ocupou o cargo. Como tal, as conclusões do relatório seguirão agora para a Procuradoria-Geral da República, que deverá iniciar uma investigação. A necessidade deste trabalho de inventariação vinha de bem longe. “Estava para ser feito desde os anos 1990”, referiu, acrescentado que 49 das obras por localizar estão desaparecidas desde 1992. Após ser questionada, a ministra não revelou, contudo, quais os locais onde reapareceram algumas das obras agora localizadas pela equipa da DGPC ou quais são as que ainda continuam em paradeiro incerto.
Não se sabe, portanto, se uma das obras agora recuperadas será uma das imagens da série “Entrada Negra”, um conjunto de fotografias de Helena Almeida, ou ainda “Estudo para o Cinema Batalha”, um desenho de Júlio Pomar. No ano passado, o gabinete de Graça Fonseca já tinha revelado que pretende avançar com a exposição das obras que se encontram “por equipamentos de todo o país”.