Num clima de crescimento do antissemitismo e da extrema-direita no chamado Ocidente, comemora-se esta segunda-feira o 75.º aniversário da libertação do maior campo de concentração nazi – Auschwitz-Birkenau, na Polónia – pelo Exército Vermelho da então União Soviética. Mas no Dia Internacional de Comemoração em memória das vítimas do Holocausto, o “nunca mais” repetido pelos judeus prisioneiros aquando da sua libertação não está garantido. É a memória histórica do momento mais violento e sangrento da humanidade que está em causa, avisam analistas e sobreviventes.
“O trabalho torna-te livre” que ainda hoje se lê nos portões do campo que matou estimadamente 1,1 milhões de pessoas, a maior parte judeus, seguindo-se polacos, sinti e romani, entre outros povos europeus, era uma mórbida ironia. “Os gritos durante a noite eram simplesmente inacreditáveis. Nós ainda não compreendíamos porque é que não nos matavam quando acabávamos [o trabalho] e porque é que tínhamos de sofrer tanto”, confidencia à CNN Ziggi Shipper, que foi para Auschwitz quando tinha 14 anos. Hoje, aos 90, dedica a sua vida a contar histórias sobre o que aconteceu naquele inferno: “Não podemos esquecer”.
Uma preocupação bem patente em alguns depois de terem sido libertados. “Uma coisa eu senti de certeza: tenho de contar a toda a gente o que aqui aconteceu. Se anotar agora e todos ficarem a saber, isto nunca mais há de acontecer”, escreveu o médico judeu sobrevivente Eddy De Wind num epílogo da reedição do livro Última Paragem em 1980, lançado pela editora Planeta em Portugal no ano passado. “Por outro lado desejava pôr um ponto final a tudo, como se me pudesse libertar de tudo o que me assombrava pondo o que sentia por dentro cá para fora, para o papel”.
Ao contrário de outros campos de concentração, onde foram exterminados no total cerca de seis milhões de judeus e entre 300 a 500 mil pessoas da comunidade cigana, Auschwitz escapou à destruição, embora as câmaras de gás que chegaram a matar seis mil pessoas por dia com o zyklon B – o químico utilizado no gaseamento – tenham sido desmanteladas. Ainda assim, a sua preservação não é sinónimo de consciencialização do que se passou há 75 anos. “Cada vez mais temos tido problemas em ligar o nosso conhecimento histórico com as nossas escolhas morais de hoje”, salienta ao diário norte-americano New York Times Piotr Cywinski, diretor do Museu de Estado Auschwitz-Birkenau. “Consigo imaginar uma sociedade que entende a História muito bem mas que não tira nenhuma conclusão desse conhecimento”.
Crescimento do antissemitismo
Inferno para uns, local de culto para outros. Há um aumento perturbador do número de visitas de simpatizantes da extrema-direita e de negacionistas do Holocausto aos antigos campos de concentração nazis, alertou ao Neue Westalische o professor Volkhard Knigge, chefe da fundação em memória dos campos de Buchenwald e Mittelbau-Dora, os maiores dentro das fronteiras da Alemanha. “Até vemos slogans antissemitas ou declarações como: ‘Se os campos ainda estivessem em operação, não teríamos problemas com estrangeiros”, conta, acrescentando que as visitas guiadas têm sido alvo de disrupções premeditadas por parte de negacionistas que chegam mesmo a questionar se o Holocausto ocorreu.
Dentro das fronteiras da União Europeia, a violência antissemita tem estado em crescimento nos últimos anos. No ano passado, uma sinagoga foi atacada por um confesso simpatizante da extrema-direita na cidade alemã de Halle. Um inquérito da Agência de Direitos Fundamentais da UE (ADFUE) realizado em 2018 concluiu que 65% dos cidadão franceses e 43% dos alemães consideram os incidentes antissemitas um “problema muito grave”, em contraste com apenas 21% dos cidadãos italianos.
Segundo a mesma agência, a maior parte dos incidentes antissemitas têm ocorrido na Alemanha, na Holanda e na Bélgica. “O assédio, o abuso verbal e o menosprezo de judeus tornou-se ‘normal’ em algumas sociedades europeias hoje – uma tendência muito preocupante”, realçou à estação alemã Deutsche Welle Ioannis Dimitrakopoulos, conselheiro científico da ADFUE.
Na Alemanha há uma progressiva preocupação com a infiltração de neonazis nas Forças Armadas, principalmente nas forças de elite conhecidas como as Forças Especiais de Comando (KSK), cuja penetração é cinco vezes maior do que noutras unidades (atualmente, duas dezenas dos seus membros estão a ser investigados), disse este domingo ao Welt am Sonntag o diretor das secretas alemãs, Christof Gramm. Ao mesmo jornal, anunciou que os serviços secretos alemães estavam a investigar 550 soldados da Bundeswehr – as Forças Armadas Unificadas da Alemanha – por extremismo de direita, adiantando que foram registados 360 casos do mesmo tipo em 2019.
A existência de elementos antissemitas nas unidades especiais alemãs parece ter uma longa história. Em 2003, o então líder das KSK, o general Reinhard Gunzel, foi despedido pelo ministro da Defesa pelo seu apoio aos comentários feitos pelo deputado conservador Marti Hohmann. O deputado disse na altura que os judeus se comportaram como nazis em 1917, altura da Revolução Russa.
Não é só no continente europeu que o antissemitismo está a criar novas raízes. Do outro lado do Atlântico, de acordo com a Hate Crime Statistics, base de dados do FBI, os incidentes antissemitas (um incidente pode equivaler a um ou a mais delitos) cresceram 37,1% entre 2014 e 2018 nos Estados Unidos. Num mau sinal dos tempos que se vivem, o ataque antissemita mais mortífero da história dos EUA ocorreu em 2018, quando um atirador matou 11 crentes numa sinagoga em Pittsburgh, Pensilvânia.