Bragança.  A “ilha” cabo-verdiana  que enche a cidade

Bragança. A “ilha” cabo-verdiana que enche a cidade


O assassinato de Giovani Rodrigues alimentou especulações por semanas. O i visitou Bragança e foi conhecer o quotidiano da comunidade cabo-verdiana. E como decorre o seu processo de integração na cidade e na região.


Bragança, nove da manhã. Um novo dia começa, mas a hora de ponta não acelera a pulsação de quem caminha pela Baixa da cidade. Na capital do nordeste sobra tempo e paciência para se alcançar o destino e a parte envelhecida da população já nem sequer desperdiça as solas com caminhadas pelas ruas.

A pacatez assegurada pela condição geográfica de Bragança – uma região resguardada pela distância e pelo relevo dos grandes centros urbanos – assumiu-se, na última década, como o seu principal cartão-de-visita. Os antigos ensinavam a “fazer das fraquezas forças”, uma lição que, neste caso, as instituições da cidade souberam aplicar perfeitamente – em particular o Instituto Politécnico de Bragança (IPB), assumidamente o epicentro de toda esta mudança. Foi através dos panfletos do IPB, há precisamente dez anos, levados na bagagem de férias por um punhado de cabo-verdianos já a residir em Bragança, que se deu início ao processo que transfigurou por completo a cidade e a região – uma mudança visível logo à chegada e à primeira vista, em cada rua, praça e loja.

Bragança assume-se hoje como a 11.a ilha de um arquipélago situado a mais de três mil quilómetros de distância, de onde centenas de cabo-verdianos chegam anualmente (foram 500 só neste ano letivo), oferecendo à cidade novos ritmos e novas cores. Consigo carregam sonhos de futuro, a esperança e o respeito – palavras a que todos se agarram mais estoicamente que nunca, após os acontecimentos das últimas semanas.

Mas como é verdadeiramente a vida de um cabo-verdiano em Bragança? “Sempre me senti muito bem recebida pela população de Bragança”, diz-nos Yarin Monteiro, natural da ilha de São Vicente, a residir na terra (e sentindo-se “muito feliz”) há já cinco anos.

“A integração para quem vem de Cabo Verde é muito fácil. Bragança é mais ou menos do tamanho das nossas terras, o que facilita a adaptação a esta nova realidade. É muito mais fácil do que se fôssemos logo para Lisboa ou para o Porto”, sublinha a dirigente estudantil.

Não existem segredos, mas Yarin Monteiro explica uma regra, aconselhada pelos mais velhos e usada sem exceção por quem chega pela primeira vez: “É muito importante perceber como funciona a comunidade onde nos vamos integrar e fazê-lo respeitando sempre os seus hábitos e costumes” – um sinal que dizem ser de inteligência e que cada cabo-verdiano gosta de aplicar. Existe apenas algo que não é possível superar: “O frio e a saudade da família”, diz-nos Yarin Monteiro.

Nas ruas da cidade e pelo campus é fácil dar de caras, a cada segundo, com estudantes cabo-verdianos. Neste ano letivo são 1200 os inscritos no IPB, muitos deles também trabalhadores em part-time no comércio do centro – especialmente em cafés e supermercados –, o que representa um impacto crescente em Bragança, contribuindo para uma evolução positiva dos dados demográficos; e ainda promovendo atividades culturais e desportivas até então inexistentes.

Orlando Rodrigues, presidente do IPB, recorda “um projeto que teve início em 2010”, sustentado “num espírito de missão que pretendia transformar a cidade e a região, combatendo, primeiro que tudo, a desertificação e o envelhecimento”. Dos quase 22 mil habitantes de Bragança, nove mil são estudantes do IPB, sendo três mil desse universo originários de outros países. “Neste momento temos mais de 60 nacionalidades na nossa instituição”, afirma. Cabo Verde destaca-se, obviamente, mas há também brasileiros, angolanos e são-tomenses em número significativo. Esta estratégia garantiu a sobrevivência (e o rejuvenescimento) de uma instituição fundada em 1983, permitindo construir uma realidade renovada. Os argumentos são objetivos: às características da cidade aliam-se ainda o valor das rendas e as propinas reduzidas, face às praticadas mais para o litoral.

O presidente do IPB destaca “a aposta ganha”, encontrando na multiculturalidade, condição sonora, uma fórmula que “permite alargar os horizontes não só para os alunos, mas também para a população de uma forma mais geral”. “Essa troca de conhecimentos e experiências é hoje um dos principais atrativos do IPB e da própria cidade”, garante o dirigente.

Uma década volvida, o choque socioeconómico desta política é agora marcadamente notório e olhado com satisfação pela população. A cidade tornou-se uma plataforma de formação académica e profissional, permitindo aos seus “novos” jovens a aquisição de conhecimentos e experiência. Na maioria dos casos, esses alunos acabam por regressar aos seus países de origem. “A maior parte dos nossos alunos volta a casa, o que é perfeitamente natural. Muitos deles ocupam hoje lugares de destaque nos respetivos países”, diz Orlando Rodrigues. “É algo que nos enche de muito orgulho”, conclui.

A notícia do assassinato de Giovani Rodrigues, estudante caloiro do IPB, não poderia deixar de ser recebida com surpresa e choque na cidade e no campus. Ao abordar o tema, os sorrisos rasgados cessam. E os olhares procuram imediatamente o chão. Apesar do “medo” e das “cautelas” iniciais, que alguns ainda admitem, é opinião generalizada que este caso se tratou simplesmente de um exemplo isolado e sem paralelo. Neste momento, todos se esforçam por fazer regressar a normalidade e, simultaneamente, por evitar um impacto negativo nas fases de candidatura que se avizinham.