PJ Harvey  pelos “lugares que não estamos habituados  a sentir”

PJ Harvey pelos “lugares que não estamos habituados a sentir”


O último disco de PJ Harvey resultou de uma colaboração de vários anos com Seamus Murphy, fotojornalista e realizador de PJ Harvey: A Dog Called Money, agora em sala.


Num longínquo dia de 2011, PJ Harvey cruzou-se com o trabalho de Seamus Murphy e decidiu contactá-lo. Era uma exposição sobre o Afeganistão, que o fotojornalista irlandês vem visitando ao longo de 12 anos. Primeiro, ele fotografou-a, mas depressa perceberam que poderiam levar a sua colaboração bem mais longe. PJ Harvey terminava por essa altura Let England Shake, o seu penúltimo álbum de estúdio, e decidiram que depois disso dariam início a um projeto colaborativo. Dos lugares que ao longo destes anos visitaram juntos – Kosovo, Afeganistão, Estados Unidos – saiu um disco, The Hope Six Demolition Project (2016), e um filme, PJ Harvey: A Dog Called Money, que, depois de ter sido exibido na última edição do Leffest, pode agora ser visto em sala (em exclusivo nos cinemas Medeia). Foi sobre ele que o i conversou com Seamus Murphy.

Foi com a PJ Harvey que começou a fazer filmes, há uns anos já. Como é que isso aconteceu?

Ela viu uma exposição minha com fotografias do Afeganistão, que visitei ao longo de 12 anos como fotojornalista, e entrou em contacto comigo. Há uns anos tinha já trabalhado como assistente de câmara, talvez durante um ano, e não gostei muito. Não gostei da experiência de trabalhar com equipas grandes, então voltei-me para a fotografia. Mas sempre quis fazer filmes, sempre quis regressar. A verdade é que mesmo antes de fotografar a Polly [Jean Harvey] já tinha regressado ao Afeganistão para filmar. Ou seja, já estava a fazer um filme, já estava a trabalhar nesse sentido. Comentei isso com ela e ela ficou: “Mas fazes filmes, não gostavas de fazer uns trabalhos para mim?” Foi assim. Há muitos anos tinha trabalhado na indústria, mas esta proposta de fazer filmes musicais foi… Pensava sempre “um dia ainda vou fazer um filme”, mas andava tão feliz e tão ocupado com os meus trabalhos em fotografia que…

É uma dessas pessoas que sonham com uma possibilidade qualquer de poder ter duas ou mais vidas paralelas de forma a conseguirem ter duas carreiras simultâneas?

Ah, não, não. Estou muito feliz agora. 

Sim, mas às vezes pode ser difícil fazer pausas, pôr uma atividade de parte para poder ganhar espaço para outra. 

Mas, sabe, a beleza da vida é essa: não há tempo suficiente. E depois morremos. Neste momento gosto deste malabarismo também. Estou a equilibrar muitas coisas entre filmes (vários filmes) e fotografia. Há um filme que estou a tentar fazer sobre a Rússia e a América e a sua estranha relação. Terminei agora uma série de fotografias que darão um livro, julgo que no final deste ano, mas ao mesmo tempo tenho dedicado algum tempo a filmar para o mesmo projeto. E gosto. Gosto do facto de serem bastante diferentes, embora muito semelhantes. É a mesma câmara a que uso.

Há uns anos, isso não era possível. Também foi esta facilidade que trouxe o digital que lhe permitiu começar finalmente a conciliar as duas coisas? 

Sim, absolutamente. Nos velhos tempos, precisaria de uma grande câmara.

Que não poderia ser operada por uma pessoa sozinha, obrigaria a uma equipa maior, exatamente aquilo de que tinha fugido. 

Exatamente. Os trabalhos que fiz, sobretudo em publicidade, tinham equipas de 20 pessoas, o que também tem um lado interessante, um lado social. Só não queria passar a minha vida a fazer isso. Gosto de poder trabalhar sozinho ou então com uma equipa muito pequena, tipo eu, um montador… também é bom trabalhar com outras pessoas, acho que seria interessante trabalhar com um escritor [argumentista], talvez com outro realizador… Mas isto também tem a ver com o tipo de filmes que faço.

Que permitem que assim seja. E que, mais do que permitirem…

… têm de ser assim, de certa forma. Às vezes, as imagens são coisas que acontecem de repente na rua, coisas que vejo quando estou a caminhar, por exemplo, que me dão uma ideia qualquer que depois sigo. Se tivesse uma equipa comigo, além de ter de lhe estar a pagar, teria de perder demasiado tempo a comunicar com ela. Isto também vem do meu trabalho como fotógrafo de rua. A câmara que uso para filmar é uma DSLR [câmaras usadas na fotografia profissional], o que significa que posso levá-la ao ombro pela rua. Não preciso de um carro para transportar material, não preciso de um assistente para fazer o foco. A forma como faço filmes é muito particular. Não é normal no cinema este tipo de abordagem. 

Mas é o que lhe permite chegar a imagens nem sempre possíveis nas circunstâncias a que chama normais.

Exato. Assim mando em mim próprio, que é também a razão pela qual escolhi ser fotógrafo. Não queria um emprego, não queria um patrão. Claro que o cinema – o cinema “normal”, mainstream – precisa de equipas, precisa de orçamentos, precisa desse tipo de organização. Não é, simplesmente, a minha forma de trabalhar, o que não quer dizer que eu não possa evoluir, crescer nessa direção, porque adoro cinema. Formas de trabalhar diferentes dão resultados diferentes. Aqui, para a Polly e eu fazermos o filme que fizemos, tinha mesmo de ser desta forma. O que aconteceu foi que ficámos amigos, sentimos que confiávamos um no outro, e daí veio tudo. 

Voltando àquele vosso primeiro contacto, o que lhe disse ela? Queria já fazer-lhe aquela proposta ou quis só conhecê-lo?

Queria conversar, talvez quisesse que a fotografasse, mas acho que não era claro para ela. Acho que quando gosta de alguma coisa, ela tenta chegar às pessoas, enviar uma nota. Neste caso, ela estava já a fazer pesquisa para o Let England Shake [2011] e o que encontrou no meu trabalho foram lugares inquietos – no caso, o Afeganistão, em diversas situações. Acho que o que lhe interessou também foi essa ideia da vida normal no Afeganistão, para lá da guerra. 

A vida que continua apesar de tudo, porque tem de continuar. Creio ter lido que não conhecia a música dela quando falaram pela primeira vez.

Não. Conhecia a figura, achei sempre que era uma persona muito interessante. Portanto, não conhecia a música, mas conhecia este nome, PJ Harvey. Sabia mais: sabia que vinha de Bristol, que fazia parte da cena musical de Bristol. Quando percebemos que gostaríamos de fazer alguma coisa juntos, o que pensámos foi que talvez, em vez de ela me passar uma demo e dizer “estas são as canções, gostarias de trabalhar a partir daqui?”, devêssemos esperar pelo próximo, num projeto que pudéssemos começar juntos, em tempo real, nos mesmos lugares. Enquanto ela estivesse a escrever, eu fotografava, num projeto colaborativo. Poderia ser um disco, mas não sabíamos. Poderiam ser fotografias. Depois percebemos que talvez um filme juntasse tudo, que seria um plano sólido. Então, o que aconteceu foi que comecei a enviar-lhe fotografias do Kosovo, onde tinha estado no final dos anos 90, e depois tivemos a ideia de ir ao Kosovo.

E nesse momento em que partiram para o Kosovo começaram a dar já forma ao que seria este projeto?

[Pausa] Não estava nos nossos planos irmos ao Afeganistão nessa altura, isso veio quase dois anos depois. Fomos ao Kosovo, foi a primeira vez que ela viajou de verdade: sem a banda, sem a família, foi uma viagem dela, uma coisa que nunca tinha feito antes. Foi muito bonito. As situações e as pessoas a que a levei foi tudo muito mágico e inspirador. Foi depois de fazermos essa viagem que percebemos que poderíamos mesmo trabalhar juntos. Porque podia ter corrido mal. Ela é uma rock star, e o Kosovo… no Kosovo não há muitas opções. Há um hotel bom, um hotel mau, se o bom estiver cheio tem de se ir para o mau. Mas nessa viagem percebi que é fácil viajar com ela, e acho que ela pensou o mesmo de mim. Depois do Kosovo percebemos que isto se tornaria mesmo um projeto. E, um ano e meio depois, estava eu no Afeganistão quando pensei “e se trouxesse a Polly para cá por uns tempos?”. Talvez fosse uma ideia maluca, talvez ela nunca o fizesse, talvez o manager nem a deixasse. Não sabia. 

Porque era o Afeganistão. 

Sim, em 2012, que foi uma altura complicada. Mas escrevi-lhe e ela disse-me que sim, que gostava de ir. E foi assim que aconteceu.

A essas imagens, às quais se juntaram ainda as de uma viagem aos Estados Unidos, em que vemos já Trump a chegar ao poder, acabaram por juntar também as imagens da gravação do disco que resultou daqui. Como chegou o filme a esta forma final?

De início, não estava nos meus planos filmar também a gravação do álbum, era demasiado óbvio. Mas quando percebi a forma como ia ser gravado [numa instalação de arte e com público] e o quão nervosa ela estava com isso, achei que seria interessante, pelo desafio. 

E agora, como olha para este filme, com tudo o que ele reúne? Todos os lugares, tão diferentes entre si, mais a gravação do disco e as músicas.

Adoro-o. Vejo-o como um filme de processo, o processo que atravessámos e as pessoas e os lugares que entraram nele. Pessoas que conhecemos, as histórias que partilharam connosco ou que pude filmar. É uma espécie de olhar sobre o mundo para lá de casa. É o que está lá fora. Antes do Let England Shake, a Polly escrevia canções a partir de dentro, do seu corpo, das suas próprias experiências. No Let England Shake começou a olhar para fora de si própria e neste projeto olhou mais longe, para fora de Inglaterra, para mais além, para lugares mais longínquos e que são desconfortáveis. Lugares que estamos habituados a ver nas notícias mas não estamos habituados a sentir, a ver para lá da superfície.