Em cativeiro, com Madame X

Em cativeiro, com Madame X


Com muito humor, música de encher o ouvido e comentários políticos lançados para o ar com (muito) pouca subtileza, assim foi a segunda data da digressão Madame X de Madonna no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.


“O mundo é selvagem” é o mote de Killers Who Are Partying, faixa do mais recente disco de Madonna, Madame X. Mote que pode muito bem ser aplicado ao concerto que vimos ontem à noite, segunda data das oito agendadas para o Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Uma ambiciosa montra em que Madonna apresenta toda a música que tem consumido nos últimos anos que tem vivido em Lisboa.

Apresentações feitas, vamos ao Coliseu e ao que por lá se viveu: estamos perante um cenário que é uma réplica daquilo que Madonna chama da sua própria casa de fados. Até porque, numa das curvas do alinhamento, interpreta Fado Pechincha acompanhada por Gaspar Varela (responsável, aliás, pela primeira parte do concerto com o seu conjunto), bisneto da lendária fadista Celeste Rodrigues, irmã de Amália. É ele quem dedilha a guitarra portuguesa, na faixa acima citada, e ainda numa outra: Crazy. Ouve-se fado e Dino D’Santiago, um dos principais responsáveis por apresentar todos estes novos sons à diva, junta-se à festa para cantar um hino da morna, Sôdade, de Cesária Évora.

“Madame X não gosta de ficar no mesmo sítio muito tempo”, diz-nos a rainha da pop. É então que o cenário muda para Medellín, cidade colombiana que partilha nome com o tema de influências reggaeton. Só que piscamos os olhos e já estamos no Médio Oriente, com Come Alive, onde predominam as influências orientais. Dezenas de dançarinas, assim como a cantora, surgem com um traje tradicional.

É certo que damos a volta ao mundo com Madonna, mas uma questão impõe-se é: quem é, agora, Madonna? Temos fadista? Irá dedicar-se a tempo inteiro à música latina?

Não é preciso procurar muito longe para encontrar pistas: “Aquilo que mais magoa / É que eu não estava perdida”, frase retirada de Extreme Occident, outra das canções de Madame X, é ao fim ao cabo uma meditação sobre os seus tempos de solidão em Lisboa. Madonna nunca esteve perdida, assim como a sua identidade. Esta é a Madonna de sempre. Por muitos dançarinos, guitarristas portugueses ou batucadeiras que se coloquem em cima de palco, a rainha da pop continua a estar sempre no centro das atenções e as luzes vão sempre brilhar mais fortes em cima desta. Quem mais no mundo seria capaz de recolher num concerto 1300€ para oferecer à organização sem fins lucrativos Raising Malawi, oferecidos por dois fãs na fila da frente, para poder ficar com uma polaroide tirada pela cantora durante o espetáculo? 

E aqui há que sublinhar espetáculo, porque falar em concerto é reduzir esta performance de duas horas que a cantora de 61 anos ofereceu ao Coliseu dos Recreios, que apesar de não estar a abarrotar, estava repleto de fãs acérrimos que gritavam, suavam e, apostamos, se ela lhes pedisse, sangravam até pela sua rainha. “Não falem quando eu estou a contar uma história”, pedia Madonna a um fã mais incontido, que aproveitou o momento para expressar o seu amor platónico.

Mesmo essas pessoas que a acompanham desde sempre não pareceram importadas com grande parte dos clássicos, como Like a Virgin ou Material Girl, terem sido omitidos (para os mais saudosos, houve as interpretações de VogueAmerican Life,  Like a Prayer, ou uma performance bastante intimista de Frozen, onde a filha mais velha de Madonna, Lourdes Leon, surgia no vídeo projetado a envolver a cantora), uma vez que o alinhamento se focou principalmente em Madame X, executado com excelência (exceção para um certo exageros nos graves, cuja acústica do Coliseu não ajudou).

Se a execução foi irrepreensível, apenas alguém muito cínico poderia criticar os passos de dança mais desajeitados dada a lesão na perna da sexagenária.

No seu reportório, Madonna sempre foi conhecida por adotar toda a música de que gostava e transformá-la em algo novo, que transporte com a sua identidade. E assim o fez mais uma vez em Madame X, trabalho para o qual trouxe as Batukadeiras. Só que ver uma mulher com uma fortuna inimaginável a dançar em frente à Orquestra de Batukadeiras de Portugal, um grupo de mulheres cabo-verdianas que se uniram para continuar a espalhar este ritmo tradicional do seu país, tem também o seu quê de desconfortável – se nos fixarmos nesse fosso.

Não sabemos se este pensamento passou pela cabeça da rainha da pop, que trouxe estas mulheres para o tema Batuka. A verdade é, apropriações culturais à parte, Madonna trouxe uma visibilidade mundial inédita a este género – é justo dizer que antes de Madonna, as Batukadeiras passavam (infelizmente) bastante despercebidas até dentro do nosso país. Certo é que, após a dança, o fosso como que diminuiu, quando Madonna se senta ao lado das ‘colegas’ e dá o palco a quem toda a sua vida se dedicou ao batuque.

Em conversa com i, num artigo sobre esta Orquestra, Maria de Lurdes Monteiro, vice-presidente da Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal (AMCDP) e membro da Orquestra de Batukadeiras de Portugal, confessou que Madonna tinha, efetivamente, contribuído para “levar o batuque ao resto do mundo”, apesar de no concerto e na faixa em questão se mostrar apenas uma pequena amostra do que é realmente uma peça de batuque.

Toda esta atuação trouxe mensagens políticas, desde um número musical em que é simulado um motim policial ou um outro em que um agente secreto é baleado (número que abriu o concerto e que se repetiu por três vezes), enquanto mensagens são projetadas no palco. “Artist is here to disturb the peace”, frase de James Baldwin, escritor negro e sionista, que surgiu ao longo do concerto, foi uma delas.

E foi esse distúrbio que Madonna nos trouxe durante toda a atuação. Ao contrário de tantos artistas/produtos pop que nos têm sido servidos nos últimos tempos, que nos trazem uma mensagem mais oca do que uma parede falsa e com posturas apolíticas, a rainha da pop vem relembrar por que é que ocupa esta posição e por que é que sempre se destacou por ter uma voz politicamente ativa. Seja pelos direitos das minorias ou pelo empoderamento feminino, a voz de Madonna continua a soar bem alto e sem grandes subtilezas.

Não sabemos se estas questões passaram pela cabeça dos fãs, mas, no final, pareciam satisfeitos. Muitos sorrisos e até olhos lacrimejantes abandonaram a sala do Coliseu dos Recreios, mas, mesmo depois de mais de duas horas de Madonna, não hesitaram em correr para a janela do edifício quando a viram abandonar a sala de concertos e a entrar no seu carro privado, com a esperança de pelo menos receberem um aceno de despedida.

Emoções ao rubro e que, certamente, continuarão ao mesmo nível nas próximas seis datas que a cantora ainda tem marcadas por terras nacionais. Mais um país onde pode dizer que está a jogar em casa.