Restos humanos, sapos envenenados e peixes-balão, eis três dos ingredientes descritos como os mais comumente usados no ritual que, na prática vudu, desencadeia o processo de zombificação de um homem. Mas falta somar-lhe ainda um ingrediente fundamental, a tetrodotoxina: uma neurotoxina capaz de bloquear os potenciais de ação dos nervos que em doses elevadas pode imobilizar totalmente um ser humano por vários dias.
Se é pelo esventrar de um peixe-balão à faca que começa o novo filme de Bertrand Bonello, a receita do chamado “pó zombie”, essa não é resultado de qualquer espécie exercício de ficção do cineasta francês. Isto porque não foi no cinema americano que nasceram os zombies. O papel dos americanos nesta história foi antes o de recuperar uma velha história haitiana, a remontar à época colonial: eram afinal mortos-vivos os homens feitos escravos nas plantações de cana e refinarias de açúcar que, nas primeiras décadas do século XX, já depois da independência do país, passaram a ser exploradas por empresas americanas.
Em 2010, quando se viu devastado por um sismo de consequências das mais devastadoras de que há memória, o Haiti ficou cristalizado no imaginário coletivo das sociedades para as quais não passava de um nome entre o exótico e o distante como o país mais pobre do hemisfério ocidental. De França, o país do qual o Haiti conseguiu a independência apenas no século XIX – aquele em que a História se inventa a ela própria, como dirá a professora de um grupo de adolescentes que frequentam um colégio fundado por Napoleão – Bertrand Bonello chegou ao Haiti com a ideia de um filme. Devolvendo a figura do zombie às suas origens através da história de um dos que ficaram para a História: Clairvius Narcisse (1922-1994), que depois de zombificado e depois feito escravo, conseguiu libertar-se e regressar à casa.
Filme contado a dois tempos – duas épocas e dois lugares, Haiti, 1962, e França, “nos dias de hoje” – A Criança Zombie é um filme que parece ter dois inícios, como recordou numa conversa ao telefone com o i Bertrand Bonello, que há uns 15 anos se cruzou com a história de Clairvius. “A história ficou-me na cabeça e, há um ano e meio, quando comecei a pensar em fazer um filme de forma diferente, talvez num lugar que não fosse Paris, esta ideia regressou-me à memória. Era uma história que me interessava por vários aspetos: primeiro, a ideia de pegar numa figura tão conhecida, quase uma figura pop, que é o zombie e levá-la de volta às suas origens e, através desse movimento, fazer uma evocação sobre a escravatura e do colonialismo. E através do cinema de género, fazer um statement político sobre a relação entre França e o Haiti e entre França e o colonialismo em geral”.
Mas depressa se impôs uma questão: que autoridade teria um realizador branco, francês para contar uma história que não lhe pertence, a história de um símbolo de um país que, com o seu, partilha um passado histórico de violência colonial? “Tinha que encontrar um bom ponto de vista para a contar. Não podia limitar-me a contar simplesmente a história do Clairvius – talvez não seja possível um francês branco chegar ao Haiti e dizer ‘ok, este é o meu filme’. Tinha mesmo de encontrar um ponto de vista que viesse de França, para que pudesse estar no lugar certo para contar a história. A história do Clairvius está correta, mas ficcionei algumas coisas, como a existência da sua neta”.
Interpretada por Wislanda Louimat, Mélissa, personagem ficcionada como neta de Clairvius Narcisse, é uma adolescente de 17 anos que vive em França mas nasceu no Haiti, que deixou com uma tia que pratica rituais vudu depois de ter perdido os pais no terramoto de 2010. É entre a história da sua integração no colégio interno em que se encontra com Fanny (Louise Labeque) e o processo de integração no seu grupo e o Haiti no tempo em que o seu avô se tornou zombie que se vai dividindo A Criança Zombie (Zombi Child, no título original) que, estreado em Cannes, chegou agora às salas portuguesas. “Inventei-a para conseguir encontrar um personagem que nos dias de hoje nos levasse de volta a esta história. É uma história de adolescentes porque acho que é a idade certa para esta história: é uma idade em que gostamos de filmes de terror e é interessante jogar com o que é um zombie para elas. O zombie americano? Para aquela jovem, é o avô dela”.
Mas não é apenas entre dois lugares e dois tempos que se parte este filme que o cineasta francês fez suceder a Nocturama (2016), que se havia seguido a um biopic dedicado a Yves Saint Laurent nos anos que marcaram o auge da sua carreira, estreado em 2014. A Criança Zombie é também um filme de géneros: os zombies, o terror e o coming of age, a enveredar nalgumas cenas por um registo quase documental, ao mesmo tempo que se afirma como indubitável filme político. Uma mistura que, nota Bonello, vem da liberdade que sentiu que lhe pedia um filme sobre a liberdade, afinal.
“Quando comecei a falar sobre o filme em França, os meus produtores começaram a dizer-me que não devia fazer o filme lá, que devia fazê-lo na República Dominicana porque o Haiti era o país mais difícil no mundo… Provavelmente é, mas por questões políticas e éticas queria mesmo que o filme fosse feito lá. Houve três dificuldades: a primeira foi a de ser aceite, a segunda que tem a ver com ser um país tão pobre que nada funciona ao nível de infraestruturas, é uma sorte ter-se um carro que ande, e a terceira que teve a ver com a violência, que prolifera por todo o país com lutas muito violentas. Numa das viagens que fizemos não conseguimos sequer sair do hotel. Mas fomos tendo sorte e acabámos por conseguir. Se há uma coisa que me deixa orgulhoso neste filme é tê-lo rodado no Haiti”.
Ao Haiti, o filme chegará em setembro. “É um país muito orgulhoso de si: conseguiram ser a primeira república negra livre e têm muito orgulho nisso. A memória da escravatura é muito, muito forte no país. Não tinha consciência do quanto até lá chegar. É algo muito presente na vida quotidiana e a relação entre o Haiti e França é obviamente uma relação complicada”.
Bertrand Bonello descreve A Criança Zombie como um filme sobre a transmissão da liberdade. Mas, contado entre dois tempos e dois territórios (o do colonizador e do colonizado), é um filme que vem também levantar outras questões. “De algumas apercebi-me só quando estava já terminado. Um dos temas do filme poderia ser também como é que lidamos com a nossa História. Quer seja a nossa história pessoal — esta adolescente, por exemplo, cuja história pessoal é ter um avô zombie e que na verdade não sabe muito bem como lidar com isso, porque conta a história mas está confusa – quer seja uma História coletiva. Como é que nós, franceses, lidamos com a nossa História também não é muito claro, também não é fácil. Como diz a professora de História no início do filme, sim, França é o país da liberdade, da Revolução, mas fomos assim tão bons o tempo todo? Não, não fomos. E como é que lidamos com isso?”.