No comboio, ou uma lição de aritmética


Afinal, só algumas coisas realmente importam. E cada vez menos


Seguia no comboio, não rumo à Estação Finlândia, mas, mal comparado, o destino também era importante, não para as massas e para o mundo, como no caso do passageiro que partira de Zurique para a Revolução, mas para si mesmo e para o seu futuro. Como naquela outra viagem, nesta também temos muito frio, e montanhas, lagos e árvores desfilando como sombras de um lado e de outro do comboio, e – ah, sim! – a roedora moinha da expectativa, funda, forte e acerada. Sempre mal comparado, bem entendido, porque tratar de si mesmo nunca é o mesmo que tratar do futuro da Humanidade, como o outro que ia para a Estação Finlândia. Mas a cada um as suas preocupações, as suas possibilidades e, bem assim, as suas realizações e os seus enganos e fracassos. Ele não era nem se sentia, nunca por nunca, como Vladimir naquela viagem. Talvez algo mais entre Hans Castorp (ainda que sem os perigos do bacilo de Koch e a Metafísica de um Setembrini à espera) e o protagonista sem nome de O Último Dia… de Vítor Hugo, passe o enorme exagero da comparação neste último caso, claro. Sempre a Literatura, esse espelho da (sua) vida, ou, verdadeiramente, essa outra vida. Maldita e salvífica Literatura. Inevitável, e elementar, meu caro Watson.

Mas, em verdade vos digo, o que ele se sentia, realmente, era outro, como creio que cada um sempre se sente perante momentos tão importantes. Como se, fora de si, se observasse, como se outro fora, sendo ele mesmo não mais do que uma sombra à medida das montanhas, dos lagos e das árvores que desfilam, e desfilam. E não é imaginação, nem literatura, muito menos delírio, mas sim o fundamental instinto animal que a alma e a inteligência humanas elevaram a uma arte: a arte da defesa, a arte da preservação, a arte de tentar driblar, à Garrincha, o medo e o sofrimento. Chama-se defesa, essa capacidade de, nestes e noutros momentos, sairmos de nós e vermo-nos como se fôssemos outro, que nos limitamos a observar e a acompanhar, a um tempo com a desconfiada curiosidade e a visceral compaixão de Nat, o protagonista do último Le Carré, “Agente em Campo”, que ele / o outro lê na sua viagem de comboio.

E, já que este texto sai quando estamos no Ano Novo – essa data convencional de suposta alegria e de forçados balanços, com hora marcada, em que Jano olha para trás e para diante –, calha muito bem invocar a ideia de viagem, e recordar a pergunta elementar: para onde vamos, como vamos e para quê? Mais um ano, e outro, e outro, mas – curiosamente, para os mais distraídos – cada um não é mais, não é uma adição, é, isso sim, uma subtração. E não se trata de nenhuma constatação – nem deprimente, nem objetiva, nem ambas, pois as duas podem bem andar de mãos dadas nestas e noutras veredas – acerca da passagem do tempo e do avanço da idade. Nada disso, embora também pudesse ser, que o papel aceita tudo, e estas alturas também para tudo dão. Trata-se, sim, do caminho para o essencial, para a afirmação de que a passagem da vida faz com que se perceba que, embora somemos – coisas, experiências, alegrias, dores, et cetera, ah tanto et cetera –, de adição em adição, afinal só algumas coisas realmente importam. E cada vez menos. Subtraindo sempre. A viagem dá-nos essa noção, e obriga-nos a perguntar, afinal, e cada vez mais: para onde vamos, como vamos e para quê? Só isso realmente importa, o mais é adereço. A subtração é, na verdade, a operação aritmética essencial.

 

Escreve quinzenalmente à sexta-feira