“Embora o dia de hontem, às primeiras horas da manhã, se apresentasse agreste, a concorrência nas ruas foi extraordinária, fazendo os restaurantes, leitarias e confeitarias magnífico negócio. As casas de espetáculos tiveram verdadeiras enchentes. As cerimónias oficiais revestiram-se de grande brilhantismo”. Arrancava assim a chamada de primeira página d’A Capital sobre a chegada de 1920, com o destaque todo para o périplo do Presidente da República (o sexto), António José de Almeida, do Paço de Belém para o Congresso, de landau, para um discurso eloquente aos deputados. E por fim numa visita aos Paços do Concelho, que terminou com uma chuva de flores.
“O ano que hoje entra não conseguirá, é claro, resolver todos os problemas que preocupam neste momento a humanidade civilizada”, discursou António José de Almeida. “Mas sem dúvida que ele vae assistir a um formidável debate, em que os povos lutando pelo seu bem-estar, chegarão a conclusões positivas. Atravessamos uma hora decisiva; e nós, os portugueses, que como todos latinos tantas vezes temos iludido a fome, a miséria e a indigência com as façanhas de um revolucionarismo estéril sem que as desigualdades diminuíssem, reconhecemos que são passadas as nuvens de utopia (…). Por mais que divaguem os filósofos, os financeiros e os economistas, tudo o que é fundamental, hoje, para a vida das sociedades, se encerra num rigoroso problema em que os dados se reduzem, afinal, a gastar menos e a produzir mais”.
Os parlamentares mostraram-se disponíveis e entusiasmados, mas a crise política era iminente e logo nos primeiros dias do ano o ministro das Finanças, contestado por aumentos de impostos, apresenta a demissão. Segue-se um período de impasse, com o executivo de Alfredo Sá Cardoso a cair ainda em janeiro, nada de muito novo. O governo mudaria seis vezes em 1920.
Sem este detalhe, as páginas do diário republicano, onde se denunciava o crescente custo de vida – até nos jazigos da capital os preços tinham duplicado, ou se pagava ou ia-se para a vala comum – traziam nos primeiros dias de 1920 algumas profecias para o novo ano. A pretexto do fenómeno francês Madame Teleme, “a conhecida profetisadora da horrível morte do czar da Rússia”, um repórter d’A Capital decide ir pedir conselhos a uma vidente lisboeta, que acaba em destaque na edição de 3 de janeiro. O relato é precioso. “Aqui na Baixa, numa rua movimentada, cheia de ruídos elegantes, buzinas, perfume de Paris em segunda, extrato da ‘Femina’ e da ‘Vie au Petir Air’, uma escada esconsa… um andar com várias portas envidraçadas (…) nada de sortilégios, de feitiçaria, nada de mochos, nem corujas, nem sapos atrás da porta; é a bruxa elegante, a comunicação com o amanhã, de telefone central e campainhas elétricas.” Em “dois traços”, Madame X diz de sua justiça – o ano será de paz no país, só perturbado por desordens de caráter social “rapidamente sufocadas”, leves complicações exteriores, provocadas por reformas coloniais, agravamento da situação financeira e económica até fins de julho mas beneficiação progressiva desde agosto até dezembro”.
Nas páginas da revista Ilustração Portuguesa, outras imagens retratam o país de há um século – e como as modas são cíclicas. “Não há dúvida que o mundo progride e que se um fradinho de Alcobaça ressuscitasse para fazer a barba na praça dos Restauradores, emudeceria de espanto ao ver como o ser barbeiro hoje em dia não é lá qualquer coisa que se improvise. No seu tempo uma navalha, sabão e uma toalha e eis uma loja de barbeiro montada no que respeita a ferramenta. Hoje não. Uma barbearia de luxo é um estabelecimento como um grande ‘restaurant’, uma ostentosa camisaria ou um consultório da moda. São as cadeiras mecânicas, comodíssimas, última palavra, são os perfumes, os cosméticos, os ‘shampoos’…”, descreve-se na última edição de 1919, onde não faltam anúncios a águas e tónicos milagrosos – e tratamentos para males piores como a sífilis.
Na edição seguinte, de 6 de janeiro, o glamour que marcaria a década de 20 – para quem o podia comprar – dava lugar às cenas do pós-guerra… ou quem sabe a uma conspiração maior para tirar os portugueses do sério. “Antigamente bichas só nos chafarizes, e chamava-se ‘à vez’. Quem queria tabaco ia ao estanco ou a um quiosque e se levava dinheiro poderia trazer quantos maços de cigarros quisesse, e quantos charutos lhe desse na gana. Com a manteiga, o açúcar, a batata o mesmo. Agora não. Uma pessoa apetece-lhe fumar hoje? Pois por causa da guerra só pode fumar amanhã (…). Manteiga é por bicha. Açúcar é por bicha. Batatas é por bicha. De maneira que a bicha como a guerra é aquele monstro que nos leva o tempo, que nos rouba a massa, que nos faz perder a paciência. E vezes há em que o cavalheiro vai para a bicha buscar açúcar e traz a borracha do caça-testas policial estampada nas costas, ou quer manteiga e vai para a morgue por ter sido reduzido a migas pelo cavalo da guarda republicana. Há quem assevere que a origem das bichas se perde na noite dos tempos. Isso porém são bizantinices que não importam e nós somos muito mais pela opinião conspícua de um boateiro que atribuía todos os açambarcamentos só ao Governo (…). Se hoje tudo se trespassa, a casa, o estabelecimento, a escritura, a chave, o arrendamento, o senhorio, o inquilino, o porteiro, porque diabo se não há de trespassar também um lugar na bicha do açúcar?”, questionava o cronista, para deixar um desabafo futurista. “Quem sabe, se a gente, um dia, já velhos, quando tudo seja elétrico, não terá ainda saudade das bichas”.