Mais uma pessoa morta num caso de violência doméstica. O ano termina esta terça-feira e há 35 histórias que acabaram da mesma forma: sem vida. No registo, ficam 27 mulheres, sete homens e uma criança para dar rosto a um crime que teima em não acabar.
O último caso aconteceu este sábado, em Alcabideche, Cascais, onde uma mulher de 38 anos foi morta pelo marido com duas facadas no tórax. Quando o INEM chegou à habitação, a mulher de nacionalidade moldava ainda estava viva, mas acabou por não resistir aos ferimentos. O caso foi entretanto entregue à Polícia Judiciária. Mas há mais histórias: um dia antes, na sexta-feira, em Leiria, um homem degolou a mulher de 35 anos com um x-ato. Fugiu e acabou por entregar-se, horas depois, à polícia, confessando a autoria do crime.
Das histórias conhecem-se poucos contornos e os crimes tendem a ser resumidos a números. No entanto, todas as semanas as notícias dão conta de tentativas de homicídio, ou violência parental. Exemplo disso, foi o que aconteceu na Amadora, em pleno dia de Natal, quando a Polícia de Segurança Pública (PSP) encontrou uma mulher de 82 anos sozinha em casa que sofria violência física e psicológica por parte da filha.
As contas feitas pelo Observatório de Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) referem que nos últimos 15 anos já morreram 500 mulheres. Só no ano passado, o número atingiu os 28.
“Os números, mais do que alarmantes, são preocupantes”, referiu ao i João Lázaro, presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Mas não basta olhar para os números para perceber a razão pela qual as histórias se somam todos os meses. “Existe um número de vítimas que nunca entraram no sistema, nem eram conhecidas pelos vizinhos, o que significa que tem de haver um esforço de prevenção, depois existe um número conhecido pela comunidade vizinha que nunca chegou a entrar no sistema e, por fim, existem as vítimas que entraram no sistema”, explicou o presidente da APAV. Sobre estas últimas, e do ponto de vista judicial, “há claramente muito a melhorar, ou seja, o tempo da justiça não é o tempo das vítimas”. E garante: “Uma das obrigações é, desde logo, quando a vítima entra no sistema, fazer uma análise das suas necessidades especiais, de proteção. Não há uma resposta imediata por parte da justiça, mas estamos a falar também de uma resposta social e comunitária”, acrescentou.
Sobre as vítimas que nunca entraram no sistema, João Lázaro refere que “não é por não acreditarem, mas por sentirem que elas próprias são as culpadas pela situação e, muitas vezes, a justiça acaba por ser o fim da linha”.
O que foi feito e o que está prometido
A criação de uma equipa técnica multidisciplinar foi uma das medidas do Governo que marcou o avanço no combate à violência doméstica. Além do dia de luto nacional, esta equipa propôs a abertura de seis gabinetes de apoio à vítima criados nos Departamentos de Investigação e Ação Penal (DIAP). Desde a sua criação, em abril, foram atendidas 262 pessoas nos DIAP de Braga, Aveiro, Coimbra, Lisboa-Oeste, Lisboa-Norte e Faro. Segundo Mariana Vieira da Silva, ministra de Estado e da Presidência, em março do próximo ano, será feita uma avaliação dos gabinetes de atendimento para decidir se o modelo deverá, ou não, ser expandido para outros pontos do país.
No início de dezembro, a Assembleia da República chumbou cinco diplomas para proteger vítimas de violência doméstica. Reconhecimento das crianças que assistam ou vivem em contexto de violência doméstica, recolha de declarações para memória futura, reconhecimento do estatuto de vítima às crianças que vivem em contexto de violência doméstica e a criação de um subsidio para vítimas de violência doméstica obrigadas a sair de sua casa – foram as propostas apresentadas pelo Bloco de Esquerda, PAN e Verdes que não passaram do papel.
Para o próximo ano, uma das propostas previstas no Orçamento do Estado é a formação dos magistrados neste tema. Esta estratégia surgiu, aliás, na sequência de um dos momentos que marcou o ano de 2019: o caso do juiz desembargador Neto de Moura, que foi afastado do julgamento de casos de violência doméstica depois de ter proferido um acórdão polémico, em que minimizava o facto de uma mulher ter sido agredida por ter cometido adultério.
Para João Lázaro, presidente da APAV, mais do que criar leis, é necessário que exista articulação entre as várias entidades, quer públicas, quer privadas: “O facto de o próprio Estado ter criado uma equipa de retrospetiva em relação às mortes, também significa um sinal de maturidade e que o Estado reconhece que existem claramente aspetos a melhorar”. Ao i, João Lázaro explicou que ainda existe “uma falta de articulação e muitas vezes de cumprimento de procedimentos” e que a grande aposta para o próximo ano “será a de governação integrada dos vários setores da atividade – entre justiça, Ministério Público, polícias, incluindo também as organizações que estão no terreno e que fazem o apoio à vítima”.
Contexto europeu
Os crimes com o carimbo de violência doméstica não são exclusivos de Portugal. No país vizinho, segundo o último balanço feito pela Delegação para a Violência de Género, até ao dia 4 de dezembro morreram 55 mulheres assassinadas pelo companheiro ou ex-companheiro – mais quatro do que em igual período do ano passado. Com estes números, contam-se 1033 mulheres mortas em contexto de violência doméstica desde 2003, ano em que começou a ser, oficialmente, feita a contabilização. Tal como em Portugal, também se somaram mais denúncias: entre julho e setembro foram mais de 45 mil.
Já em França, Emmanuel Macron apresentou 50 medidas de combate a este tipo de crime, mas o número de mortes continua a aumentar – só este ano já morreram pelo menos 137 pessoas. Os protestos contra as mortes de mulheres são também cada vez mais, num país onde a taxa de femicídio é das mais altas da União Europeia. Em setembro começou um debate alargado – que juntou Governo e associações – para discutir medidas como a retirada de direitos parentais e a pulseira eletrónica para afastar os agressores das vítimas.