Ira Sachs.  “Frankie é o meu meltdown movie”

Ira Sachs. “Frankie é o meu meltdown movie”


O filme que Ira Sachs rodou em Sintra com Isabelle Huppert como protagonista e direção de fotografia de Rui Poças chegou finalmente às salas. Ao i, o realizador fala sobre um filme que não quis que fosse sobre Portugal – ainda que veja “algo de muito português” em Frankie.


A propósito da antestreia de Frankie, no último sábado, a Cinemateca descreveu-o como um realizador de cinema “independente” que no seu percurso passou a ser menos para voltar a ser de novo. É assim que se vê? 

Não, de todo. É uma narrativa. Como cineastas, nunca somos independentes das forças económicas que nos permitem fazer filmes. Em diferentes alturas da minha vida fiz filmes de formas diferentes, mas em termos de dinheiro, não em termos do impulso inicial para fazer um filme. Tenho conseguido sempre fazer filmes que de alguma forma partem de um lugar muito pessoal. Ainda que o aparato possa alterar-se. 

Mas o “aparato” acaba sempre por influenciar aquilo em que se torna um filme. 
Sempre. Só não olho para as coisas como havendo um ponto em que mudei de direção. Acho que cada filme tem a sua história económica que, de alguma forma, acaba por herdar. O Frankie veio de uma ideia de contar a história de uma família numas férias e, nesse contexto, interessava-me criar certas fronteiras temporais. Há dez anos vi um filme chamado Kanchenjungha, de Satyajit Ray, um filme de 1962 que foi o primeiro dele a cores. É sobre uma família de férias nos Himalaias. A ação decorre de manhã à tarde, com nove histórias à volta de uma crise central. Foi a partir dessa estrutura que com o meu coargumentista [Mauricio Zacharias] escrevi este filme. Foi a minha versão, aquele a que poderia chamar o meu meltdown movie. 

E como foram dar a esta montanha em particular, a Sintra?
O Mauricio vive em Nova Iorque mas é brasileiro, e a família dele do lado materno é portuguesa. Quando ele recomendou que fôssemos ver Sintra, lembrei-me que tinha lá estado em 1977, numas férias de família. Tinha 14 anos, estava com a minha mãe e as minhas duas irmãs, e viemos a Lisboa, ao Estoril e a Sintra. Era um Portugal muito diferente o daquela altura. Isso já me tinha deixado intrigado, mas depois, quando vim cá há dois ou três anos e passei uns dez dias lá, senti uma relação muito visceral e direta com os espaços e com a paisagem. Diria que menos com o lado mágico de Sintra, que não era a Sintra em que estava particularmente interessado. 

Nem é a Sintra que encontramos aqui. 
Debaixo da camada turística há qualquer coisa de incrível naquela paisagem. E descobri estes lugares específicos para os quais escrevemos o filme. A partir desta quinta – a Quinta de São Thiago, em que se passa um quarto do filme –, depois o parque, que é o Parque da Pena, e o topo da minha montanha, que é a “Peninha”. Aviso sempre as pessoas para não irem a Sintra à procura dessa montanha, porque não existe. O filme cria a sua própria versão do lugar porque há uma história que nos dirige em direção ao topo.

O cinema, como a literatura, tem esse poder: recriar paisagens.
Correto. Sinto que não sou capaz de fazer um filme num lugar com o qual não tenha uma forma de intimidade emocional. 

Sim, até aqui tem filmado em Nova Iorque, em Memphis…
Sim, sou de Memphis. São sempre lugares nos quais sinto que tenho alguma profundidade. E por alguma razão senti isso em Sintra.

Mas isso foi imediato? Ou como construiu essa ligação?
Fui lá quatro ou cinco vezes, mudei-me para cá por seis meses… Diria que o filme é sobre aquela paisagem, não é sobre este país. Portugal é parte do filme, mas não queria fazer um filme português ou um filme sobre Portugal. 

Mas há qualquer coisa de português em Frankie para lá do lugar. O facto de boa parte da equipa ser portuguesa também fez o filme?
Muito, 95% da equipa era portuguesa. 

Todos os seus filmes são diferentes uns dos outros. Mas este em particular tem qualquer coisa que o faz parecer vir de outro lugar. 
Penso que a minha relação com o Rui [Poças, diretor de fotografia] e a Silvia Grabowski [guarda-roupa], que é alemã mas vive cá, foi determinante. Os três construímos aquilo em que se tornou Frankie. Mas a relação com o Rui foi particularmente importante. Já trabalhei com dois diretores de fotografia gregos, com um espanhol, agora com um português, e acho que em cada filme se consegue ver a marca do olhar da câmara. Acho que há algo de português entranhado no filme, mas acho que também há algo de português no próprio Rui, como camera person.

Apesar de nenhuma das personagens do núcleo central ser plana – todas elas se constroem em profundidade –, todo o filme, até o título, gira em torno de uma:Frankie. Escreveu-a (e ao filme) já com Isabelle Huppert em mente?
Tive a ideia, depois [tive] a Isabelle e percebi que esta seria uma boa história. Não tinha como fazer um filme com a Isabelle nem em França nem na América: em França, eu não teria a profundidade necessária e, na América, ela seria um peixe fora de água. Já fiz filmes sobre mulheres russas, chilenas, dinamarquesas na América, mas a ela… vejo-a como parte da Europa. 

Viu então aqui a oportunidade perfeita para trabalhar com ela. 
Sim, era o filme certo. 

Não foi o seu primeiro filme em Sintra.
Sim, eu sei. Ficou muito entusiasmada. A Isabelle é uma mulher incrível. O que adoro nela, que é o que procuro em geral nos atores, é que o que vai acontecer no momento não está determinado antes de ser filmado. Qualquer coisa pode acontecer emocionalmente no momento. Num segundo. Não ensaio com os atores, não preparo as falas antes de estarem a representar para a câmara, de maneira que não ouvem as falas uns dos outros antes de estarem em cena. Crio um diálogo entre mim e o ator, mas tento não falar sobre as motivações, porque não quero que a experiência das palavras seja simplificada – ou a experiência de estar em conversa com alguém, como estamos aqui. 

Como se fosse a primeira vez.
É realmente a primeira vez. Claro que acabamos por repetir a cena muitas vezes, mas tem a ver com dar aos atores as ferramentas de que eles precisam, tentar não me tornar, como realizador, parte desse diálogo. Não quero que estejam a representar para mim. 

Mas para eles? Ou, mais do que isso, neles?
Está neles, dentro deles, com todas as camadas do que revelam para o espetador e o que está a acontecer lá dentro. Chamaria a isto criar espaço para o improviso emocional. O argumento é bastante rígido, acho, está escrito, não lhes peço que interfiram com as palavras e acredito que lhes dou as palavras de que necessitam. Mas o território emocional é um território desconhecido. E acho que a Isabelle é perfeita para isto. Neste filme, aquilo que lhe pedi foi que fizesse menos: para que entre ela e a personagem não houvesse espaço para ironia. E ela gostou disso. Interessou-lhe. Acho que vemos diferentes partes da Isabelle Huppert neste filme, o que não quer dizer que esteja a fazer dela própria, obviamente há muita construção.

E há a história, há…
… o lugar, há o guarda-roupa, que é uma parte importante para dar forma às personagens. Interessa-me mais o guarda-roupa como parte do processo do que uma representação transformadora. E os atores têm um instinto forte sobre aquilo de que precisam. O Brendan Gleeson [Jimmy no filme] disse “é isto que vou usar”, e eu e a Silvia dissemos “ok”. Ele sabia o que tinha de vestir, e era isso. Com a Isabelle foi um longo processo até chegar à personagem através do cabelo, da maquilhagem e das roupas.

E como chegou ao Carloto Cotta para o personagem do guia português?
Foi a parte mais difícil, escolher quem faria tanto esse papel como o da mulher da cena do aniversário. No caso da personagem do Carloto porque, em termos de diálogos, pode parecer um papel pequeno, mas está em muitas, muitas cenas. Tinha de encontrar alguém que fosse tão bom ator como qualquer um dos outros atores. Não querendo dizer que não haja outros, o Carloto encaixou muito bem aí: estava à altura deles em termos de talento. É um ótimo ator e é carismático, o que também era muito importante para este papel de alguém que nos intriga mas a quem não temos acesso, porque nos está a prestar um serviço, não tem relação connosco e, ainda assim, há uma ligeira sobreposição pessoal. 

Recuando a Homenzinhos, o seu filme anterior, que a Cinemateca exibiu no sábado antes de Frankie, se olharmos para eles em conjunto…
… são ambos sobre amor e dinheiro.

E talvez em Portugal seja visto de forma diferente de na América mas, visto daqui, toca a questão que serve de pano de fundo a Homenzinhos: a gentrificação. Só que a partir do outro lado: o dos privilegiados que escolhem onde querem morar. É verdade que estão apenas de férias mas, se virmos o crescente número de franceses e americanos que se mudam para Lisboa, para Sintra, torna-se quase tudo parte do mesmo.
Interessante. Do outro lado, ou seja, do lado dos imperialistas… É uma leitura interessante. Não tinha pensado nisso. É um filme sobre a burguesia e é interessante perceber a forma como as pessoas reagem a isso. Ao viver aqui, descobri que as desigualdades eram maiores do que tinha imaginado, porque sou americano, tinha uma ideia de Portugal como uma espécie de parte da classe internacional. Mas, se isso acontece, há violência. Essa expetativa da minha parte inclui alguma violência. Acho que talvez a coisa mais consistente no meu trabalho seja este interesse nos lugares… Isso que disse é uma leitura muito interessante sobre o filme: que retrata a violência imperialista, de certa forma.

Vem do lugar de onde o vejo.

Verdade. E eu não deixo de ser um realizador americano que veio para cá fazer um filme com dinheiro francês, portanto… concordo.