A 11 de março de 2019 vivi um dos dias mais difíceis da minha existência. Uma inesperada complicação cardíaca atirou-me para a cama de um hospital durante dias que mais pareceram uma eternidade. Ressurgi desse golpe traiçoeiro mais forte e ainda com mais energia para conduzir os assuntos da pólis e cuidar incondicionalmente dos meus. Todavia, tenho vivido com uma perda que não consegui reparar.
Nesse mesmo mês de março, tinha bilhete comprado para viajar até Roma, onde seria recebido pelo Papa Francisco no Vaticano. Qualquer católico que esteja a ler-me compreenderá bem o alcance fundacional e humano deste momento. Qualquer cidadão percebe que o momento de conhecer o Papa é único e irrepetível, para mais quando se trata de um Papa como Francisco – um verdadeiro líder pelo exemplo de bondade, de caridade e de justiça.
Contra a minha vontade, mas por indicação médica, fui impedido de viajar até ao Vaticano.
A receção da pequena comitiva de Cascais acabaria por acontecer no dia 26, por ocasião da inauguração da sede portuguesa das Scholas Ocurrentes, a fundação pontifícia, em Cascais.
Para quem não conhece, as Scholas são um extraordinário projeto de ecumenismo e tolerância que saiu da cabeça do então cardeal Jorge Bergoglio, corria 2011. Trabalhando com jovens de escolas públicas e privadas, de cariz laico ou religioso, as Scholas querem tocar todos os jovens com um programa educativo assente em três pilares: desporto, arte e tecnologia – porque são essas as áreas com potencial formador, transformador e com poder de federar povos por todo o mundo.
Através de Skype, o Santo Padre estabeleceu ligação com os jovens de Cascais e deu-lhes o empowerment que uma geração inteira merece por direito próprio: “Os jovens não são o futuro, temos de corrigir essa ideia. Os jovens são o agora, são o hoje. Se esperamos que chegue a hora dos jovens, passa a hora e terminam domesticados”. Se os jovens se deixam domesticar, o seu poder transformador evapora-se. Essa é uma mensagem muito poderosa, porque sinaliza aos jovens que as principais ameaças à sua capacidade de transformar o mundo têm, em grande medida, origem na desresponsabilização, na rendição a fenómenos de gratificação instantânea, na normalização da intolerância ou na indiferença perante a desigualdade. Dito de outro modo: o exercício do poder dos jovens depende, em primeiro lugar, deles mesmos.
Através de Cascais, e dos jovens portugueses, Francisco deixou ainda outra ideia forte na construção de uma sociedade mais justa e decente: a ideia de que o poder dos jovens não deve ser exercido sem controlo da prudência. É preciso que os jovens “dialoguem entre si” e compreendam o outro, naquele que é um dos objetivos da sua fundação intercultural, inter-religiosa e interescolas. Mas não é preciso apenas que os jovens dialoguem. É preciso mais: é urgente que os mais jovens dialoguem com os mais velhos. “Os que vão pelo seu caminho sem dialogar com os mais velhos perdem as raízes, perdem o sentido da História, perdem o sentido de pertença”, vaticinou Francisco. O dedo está apontado para a crescente atomização geracional, muitas vezes revestida da mais cruel desumanidade.
Eu não estava lá, em Roma. Nem na sede das Scholas, em Cascais. Mas acompanhei cada momento como se estivesse.
Na próxima sexta-feira vou reviver cada uma dessas palavras. Depois de ter consertado o coração, vou finalmente reparar a perda que tive no início do ano. Serei recebido na próxima sexta-feira pelo Papa Francisco.
A Sua Santidade farei chegar, de viva voz, uma mensagem de Cascais: o nosso compromisso com a esperança e com a construção de um mundo melhor, em harmonia local, nacional e global.
Aproveitarei a ocasião para renovar o convite para que o Papa visite Cascais durante a Jornada Mundial da Juventude, que decorre em 2022. Recorde-se que Francisco nos deu a enorme honra de, em março, ter aceitado a Chave da Vila, que faz de Sua Santidade cidadão honorário de Cascais.
Quarenta anos depois de ter participado na receção ao Papa João Paulo ii (1982), naquilo que seria a antecâmara da Jornada em 1985, este será um dos momentos mais importantes da minha existência na fé.
Eu bem sei que o Estado é laico. Que a fé e a política não se misturam. (E não misturam mesmo.) Mas o que eu sei é que não há sociedades sem fé nem comunidades sem valores. E o que eu também sei é que os políticos católicos não podem, não devem, em circunstância alguma, esconder-se perante a hostilidade ou conformar-se ao espírito de um tempo que nos desgoverna política e moralmente.
Num mundo em violenta desagregação, em que o comportamento dos Estados reflete mais e mais o individualismo e egoísmo dos cidadãos que formam a multiplicidade de realidades nacionais, a fé e os valores são, hoje, mais necessários do que nunca.
Que o exemplo de poderosa e inspiradora liderança pela simplicidade do Papa Francisco seja, neste tempo de Advento, um apelo à reflexão de cada um de nós.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira